PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE SETEMBRO DE 2017

OS INGLESES DA CARNOTA (I)


«Uma das mais lindas propriedades do concelho e das mais antigas (…) é a Quinta da Carnota, à beira da estrada dos Cadafais a Santana da Carnota, um pouco adiante do lugar dos Refugidos», assim situa Guilherme Henriques a quinta onde seu “padrinho” John Smith Athelstane, mais tarde Conde da Carnota, veio a estabelecer-se em 1852, data em que a adquiriu a Carlos Adolfo de Kantzow, Barão de S. Jorge de Kantzow, como ele um diplomata servindo o seu país em Lisboa.
Linda e valiosa pelo seu património já ela o foi. Hoje não garantimos que ainda o seja, mas não é por esse caminho que queremos (e podemos) ir, mas sim pelo das suas origens que remontam ao séc. XV, com o estabelecimento no local de uns piedosos frades que aí edificaram um convento que foi integrado na nova Província de Santo António dos Capuchos, constituída por religiosos franciscanos da "mais estreita observância", conhecidos como “recoletos”, formada em obediência à bula "Sacrae religionis sinceritas", de 8 de Agosto de 1568.
A eleição do antipapa Clemente VII, que se estabeleceu em Avignon, deixando em Roma, na cadeira de Pedro, o recém-eleito Urbano VI (1378), dividiu o mundo cristão e a igreja, a ibérica também, mantendo-se Portugal fiel a Roma enquanto parte de Espanha apoiava o cismático de Avinhão. Durante mais de 40 anos andou a cristandade em conflito e os ódios cresceram, tendo sido nesse contexto que alguns prestigiados clérigos franciscanos abandonaram a sua Província de Santiago, na Galiza, dirigindo-se a Portugal em busca de abrigo. Entre eles vieram Frei Diogo de Árias e Frei Gonçalo Marinho que em 1400 foram enviados pelo Rei D. João I a Alenquer com a missão de reformarem o convento local, uma vez que o mesmo se encontrava em estado de anarquia.
Reformado o convento de Alenquer, decidiram os mesmos alargar a sua acção às terras circundantes, primeiro fundando o convento de Santo António na Castanheira, após o que se viraram para as terras de Carnota, onde “parece” que havia uma pequenina ermida que tinha recebido e guardado uma imagem de Santa Catarina, muito venerada por ser oriunda de uma capela arruinada de Alenquer, primitivo lugar do estabelecimento dos frades dessa Ordem quando chegaram à nossa vila em 1216.
Do convento de Odivelas, seu proprietário, receberam as terras de Carnota e com o apoio de D. João I nasceram a igreja, a enfermaria e os claustros. Ao longo dos séculos esta casa denominada Convento de Santa Catarina da Carnota engrandeceu-se com os contributos de gente notável como o mítico capitão das Índias António Correia Baharem, a quem foi dado o padroado e capela onde repousaram os seus ossos, mantendo-se esse padroado na família Baharem até 1679, quando então passou para o Príncipe Regente, futuro D. Pedro II.
Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o convento e a agora quinta passaram aos próprios nacionais sendo arrendados ao Capitão Solano de Mendonça. Depois, como acima se disse, foi vendida ao Barão de Kantzow que a vendeu ao futuro Conde da Carnota, ficando pelo meio uma história riquíssima impossível de aqui contar, por tão extensa e diversa.

JOHN SMITH ATHELSTANE, O DIPLOMATA QUE GOSTAVA DE HISTÓRIA E DE PINTURA



Quando em 1827 o jovem John S. Athelstane conheceu em Londres um brigadeiro português exilado de nome João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, estaria longe de adivinhar que aí principiaria uma amizade que haveria de perdurar por toda uma vida. De facto, entre ambos mediava uma diferença de idades de 23 anos, e enquanto um não passava de um jovem adolescente, o outro era já um militar e político prestigiado, um herói da Guerra Peninsular, das lutas travadas no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul com os vizinhos do hoje Uruguai e das lutas pela Liberdade e pelo constitucionalismo, um político que já governara o mais rico Estado do Brasil e fora também, em Portugal, Ministro da Guerra, um homem que perante o avanço de D. Miguel e do absolutismo fora aclamado em Lisboa nas manifestações de 24 e 27 de Julho de 1827, realizadas à luz dos archotes - que por isso ficaram conhecidas como Archotadas -, como um «heróico paladino da Liberdade».
Athelstane, nascido em 9 de Maio de 1813, teve como pais Michael Athelston-Smith e Sarah Walton, rezando a sua genealogia que pelo lado paterno descendia do rei Eduardo Athelstane (817-837), e teve duas irmãs, uma das quais, Charlotte Elisabeth Mary Smith, viria a casar com o Duque de Saldanha em 1856. Esse foi um casamento de dois viúvos, pois Saldanha enviuvara de Maria Teresa Horan FitzGerald, de quem teve cinco filhos, e Charlotte Elisabeth do Dr. Edwards Binns, um conhecido médico londrino que repartiu a sua actividade entre essa cidade e a Jamaica.
Foi Athelstane um diplomata com gosto pela escrita e pela pintura, deixando «algumas telas valiosas do seu pincel». Quando se estabeleceu em Portugal e na Carnota, veio a produzir interessante obra escrita, e, certamente que a tal facto não foi alheia a grande amizade que sempre o uniu a Saldanha, já que sendo este descendente pelo lado paterno dos Condes de Rio Maior e pelo lado materno do Marquês de Pombal, «foi-lhe entregando muitos valiosos documentos, determinando ainda que depois da morte o resto do espólio lhe fosse confiado».
Saldanha entregou-lhe tudo isso e também, pela grande influência que tinha junto do rei D. Luís (que, entre outros, lhe deu o invejado e raro título de “parente da Casa Real”), o título de Conde da Carnota, mas não lhe entregou a mão de sua filha Teresa que este chegou a cobiçar, pois isso da velha nobreza se unir a outras classes, mesmo que enobrecidas, era ainda coisa que os costumes da época não consagravam.

O CONDE DA CARNOTA E A SUA OBRA LITERÁRIA

Este inglês estabelecido em terras de Alenquer produziu duas obras importantes, Memoirs of the Marquis of Pombal, 2 Volumes, com edição em Londres em 1843 e em 1872 em Lisboa com tradução de J. M. Fonseca e Castro, e Memoirs of Field-Marshall the Duke de Saldanha, também em dois volumes, estes editados em Londres em 1880.
Sobre a segunda, diz Maria Fátima Bonifácio (“Uma vida feliz” em Análise Social-160) que “como obra de história, a biografia é duvidosa”, já que «ela apoia-se no testemunho directo do autor (…)» que «encenou a sua personagem exactamente como esta teria gostado de a viver e de se ver na vida real», sendo «citados dois únicos autores: Simão Luz Soriano e José Liberato Freire de Carvalho», fundamentais, direi eu, acrescentando ainda essa autora, que a obra apoia-se nos «(…) particulares  conhecimentos que lhe advinham do seu relacionamento pessoal com Saldanha e em documentos – na sua maioria correspondência - frequentemente selecionados com patente parcialidade».
Bom, estamos perante o maior desafio que pode colocar-se a um historiador, o da imparcialidade. Mas, como também o refere Bonifácio, «segundo reclama [Athelstane] ninguém conviveu tão íntima e assiduamente com o duque ao longo de praticamente toda a sua vida, desde 1827 até à morte», o que até é verdade e tornou Saldanha uma visita assídua da Quinta da Carnota. Portanto, como fugir a isso? Por outro lado sabemos que para a sua obra contou o Conde da Carnota com a empenhada colaboração de seu “afilhado” Guilherme João Carlos Henriques que levou a cabo a investigação em vários arquivos, particularmente quando da elaboração, muito alterada, da segunda edição da obra The Marquis de Pombal by the Conde da Carnota, editada em Londres em 1871.
De início os seus estudos foram orientados para o Direito, mas, posteriormente, a sua vocação centrou-se na Diplomacia, o que até viria a ser-lhe útil quando se tornou secretário do seu amigo Duque de Saldanha, o que lhe proporcionou viagens pela Europa onde «colheu nos arquivos das chancelarias muitos elementos úteis para as obras que viria a escrever».
Quanto à sua vida familiar, Athelstane foi casado com Anne Tilby (acto celebrado em 1850), casamento de curta duração, já que essa senhora faleceu a 7 de Novembro de 1856, tendo sido sepultada na igreja da quinta da Carnota, não havendo desse enlace descendentes. Mais nubloso foi o seu relacionamento com Sarah Judge, com quem teria mesmo casado e de quem teve um filho, William John Charles Henry, o nosso conhecido e estimado segundo inglês da Carnota de quem nos ocuparemos em escrito seguinte.
John Athelstane, Conde da Carnota e Comendador da Ordem Militar de Cristo, faleceu na sua quinta em terras de Alenquer no dia 16 se Abril de 1886 e repousa no cemitério do Alto de S. João, no jazigo da Casa de Carnota, construção peculiar com cobertura adossada sustentada por 6 (das 12) colunas que vieram de Ceuta quando da conquista desta praça pelos portugueses, as quais foram oferecidas pelo rei D. João I a António Correia Baharem.




 
 



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