PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE SETEMBRO DE 2017
OS INGLESES DA CARNOTA (I)
Linda e valiosa pelo seu património já ela o foi. Hoje
não garantimos que ainda o seja, mas não é por esse caminho que queremos (e
podemos) ir, mas sim pelo das suas origens que remontam ao séc. XV, com o
estabelecimento no local de uns piedosos frades que aí edificaram um convento
que foi integrado na nova Província de Santo António dos Capuchos, constituída
por religiosos franciscanos da "mais estreita observância",
conhecidos como “recoletos”, formada em obediência à bula "Sacrae
religionis sinceritas", de 8 de Agosto de 1568.
A eleição do antipapa Clemente VII, que se
estabeleceu em Avignon, deixando em Roma, na cadeira de Pedro, o recém-eleito
Urbano VI (1378), dividiu o mundo cristão e a igreja, a ibérica também,
mantendo-se Portugal fiel a Roma enquanto parte de Espanha apoiava o cismático
de Avinhão. Durante mais de 40 anos andou a cristandade em conflito e os ódios
cresceram, tendo sido nesse contexto que alguns prestigiados clérigos
franciscanos abandonaram a sua Província de Santiago, na Galiza, dirigindo-se a
Portugal em busca de abrigo. Entre eles vieram Frei Diogo de Árias e Frei
Gonçalo Marinho que em 1400 foram enviados pelo Rei D. João I a Alenquer com a
missão de reformarem o convento local, uma vez que o mesmo se encontrava em
estado de anarquia.
Reformado o convento de Alenquer, decidiram os
mesmos alargar a sua acção às terras circundantes, primeiro fundando o convento
de Santo António na Castanheira, após o que se viraram para as terras de
Carnota, onde “parece” que havia uma pequenina ermida que tinha recebido e
guardado uma imagem de Santa Catarina, muito venerada por ser oriunda de uma
capela arruinada de Alenquer, primitivo lugar do estabelecimento dos frades
dessa Ordem quando chegaram à nossa vila em 1216.
Do convento de Odivelas, seu proprietário, receberam
as terras de Carnota e com o apoio de D. João I nasceram a igreja, a enfermaria
e os claustros. Ao longo dos séculos esta casa denominada Convento de Santa
Catarina da Carnota engrandeceu-se com os contributos de gente notável como o
mítico capitão das Índias António Correia Baharem, a quem foi dado o padroado e
capela onde repousaram os seus ossos, mantendo-se esse padroado na família
Baharem até 1679, quando então passou para o Príncipe Regente, futuro D. Pedro
II.
Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o
convento e a agora quinta passaram aos próprios nacionais sendo arrendados ao
Capitão Solano de Mendonça. Depois, como acima se disse, foi vendida ao Barão
de Kantzow que a vendeu ao futuro Conde da Carnota, ficando pelo meio uma história
riquíssima impossível de aqui contar, por tão extensa e diversa.
Quando em 1827 o jovem John S. Athelstane conheceu
em Londres um brigadeiro português exilado de nome João Carlos de Saldanha
Oliveira e Daun, estaria longe de adivinhar que aí principiaria uma amizade que
haveria de perdurar por toda uma vida. De facto, entre ambos mediava uma
diferença de idades de 23 anos, e enquanto um não passava de um jovem
adolescente, o outro era já um militar e político prestigiado, um herói da
Guerra Peninsular, das lutas travadas no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul
com os vizinhos do hoje Uruguai e das lutas pela Liberdade e pelo
constitucionalismo, um político que já governara o mais rico Estado do Brasil e
fora também, em Portugal, Ministro da Guerra, um homem que perante o avanço de
D. Miguel e do absolutismo fora aclamado em Lisboa nas manifestações de 24 e 27
de Julho de 1827, realizadas à luz dos archotes - que por isso ficaram
conhecidas como Archotadas -, como um «heróico paladino da Liberdade».
Athelstane, nascido em 9 de Maio de 1813, teve como
pais Michael Athelston-Smith e Sarah Walton, rezando a sua genealogia que pelo
lado paterno descendia do rei Eduardo Athelstane (817-837), e teve duas irmãs,
uma das quais, Charlotte Elisabeth Mary Smith, viria a casar com o Duque de
Saldanha em 1856. Esse foi um casamento de dois viúvos, pois Saldanha enviuvara
de Maria Teresa Horan FitzGerald, de quem teve cinco filhos, e Charlotte
Elisabeth do Dr. Edwards Binns, um conhecido médico londrino que repartiu a sua
actividade entre essa cidade e a Jamaica.
Foi Athelstane um diplomata com gosto pela escrita e
pela pintura, deixando «algumas telas valiosas do seu pincel». Quando se
estabeleceu em Portugal e na Carnota, veio a produzir interessante obra
escrita, e, certamente que a tal facto não foi alheia a grande amizade que
sempre o uniu a Saldanha, já que sendo este descendente pelo lado paterno dos Condes
de Rio Maior e pelo lado materno do Marquês de Pombal, «foi-lhe entregando
muitos valiosos documentos, determinando ainda que depois da morte o resto do
espólio lhe fosse confiado».
Saldanha entregou-lhe tudo isso e também, pela
grande influência que tinha junto do rei D. Luís (que, entre outros, lhe deu o
invejado e raro título de “parente da Casa Real”), o título de Conde da
Carnota, mas não lhe entregou a mão de sua filha Teresa que este chegou a
cobiçar, pois isso da velha nobreza se unir a outras classes, mesmo que
enobrecidas, era ainda coisa que os costumes da época não consagravam.
O CONDE DA CARNOTA E A SUA OBRA LITERÁRIA
Este inglês estabelecido em terras de Alenquer
produziu duas obras importantes, Memoirs of the Marquis of Pombal, 2 Volumes,
com edição em Londres em 1843 e em 1872 em Lisboa com tradução de J. M. Fonseca
e Castro, e Memoirs of Field-Marshall the Duke de Saldanha, também em dois
volumes, estes editados em Londres em 1880.
Sobre a segunda, diz Maria Fátima Bonifácio (“Uma
vida feliz” em Análise Social-160) que “como obra de história, a biografia é
duvidosa”, já que «ela apoia-se no testemunho directo do autor (…)» que «encenou
a sua personagem exactamente como esta teria gostado de a viver e de se ver na
vida real», sendo «citados dois únicos autores: Simão Luz Soriano e José
Liberato Freire de Carvalho», fundamentais, direi eu, acrescentando ainda essa
autora, que a obra apoia-se nos «(…) particulares conhecimentos que lhe advinham do seu
relacionamento pessoal com Saldanha e em documentos – na sua maioria
correspondência - frequentemente selecionados com patente parcialidade».
Bom, estamos perante o maior desafio que pode
colocar-se a um historiador, o da imparcialidade. Mas, como também o refere
Bonifácio, «segundo reclama [Athelstane] ninguém conviveu tão íntima e
assiduamente com o duque ao longo de praticamente toda a sua vida, desde 1827
até à morte», o que até é verdade e tornou Saldanha uma visita assídua da
Quinta da Carnota. Portanto, como fugir a isso? Por outro lado sabemos que para
a sua obra contou o Conde da Carnota com a empenhada colaboração de seu
“afilhado” Guilherme João Carlos Henriques que levou a cabo a investigação em
vários arquivos, particularmente quando da elaboração, muito alterada, da segunda
edição da obra The Marquis de Pombal by the Conde da Carnota, editada em
Londres em 1871.
De início os seus estudos foram orientados para o
Direito, mas, posteriormente, a sua vocação centrou-se na Diplomacia, o que até
viria a ser-lhe útil quando se tornou secretário do seu amigo Duque de
Saldanha, o que lhe proporcionou viagens pela Europa onde «colheu nos arquivos
das chancelarias muitos elementos úteis para as obras que viria a escrever».
Quanto à sua vida familiar, Athelstane foi casado
com Anne Tilby (acto celebrado em 1850), casamento de curta duração, já que
essa senhora faleceu a 7 de Novembro de 1856, tendo sido sepultada na igreja da
quinta da Carnota, não havendo desse enlace descendentes. Mais nubloso foi o
seu relacionamento com Sarah Judge, com quem teria mesmo casado e de quem teve
um filho, William John Charles Henry, o nosso conhecido e estimado segundo
inglês da Carnota de quem nos ocuparemos em escrito seguinte.
John Athelstane, Conde da Carnota e Comendador da
Ordem Militar de Cristo, faleceu na sua quinta em terras de Alenquer no dia 16
se Abril de 1886 e repousa no cemitério do Alto de S. João, no jazigo da Casa
de Carnota, construção peculiar com cobertura adossada sustentada por 6 (das
12) colunas que vieram de Ceuta quando da conquista desta praça pelos
portugueses, as quais foram oferecidas pelo rei D. João I a António Correia
Baharem.