PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE OUTUBRO DE 2017

A VILA DE ALENQUER E AS INVASÕES FRANCESAS – BREVE APONTAMENTO



Num livro intitulado “O Estado de Portugal en el año de 1800”, editado em Madrid, escreveu o seu autor José Cornide, citando um tal M. du Mourier, que «(…) o planalto de Santarém e as alturas de Alenquer cobrem Lisboa e nelas se pode fazer uma guerra de postos muito sangrenta». Seria Mourier um espião ao serviço dos franceses? Napoleão saíra vitorioso do golpe do “18 do Brumário”, com o apoio dos girondinos (alta burguesia), e a França vivia a fase do “Consulado” com os olhos postos nos países vizinhos.
Nesses tempos a informação não se adquiria ou circulava rápida como hoje, pelo que havia que jogar por antecipação enviando espiões a bater o terreno disfarçados de viajantes, antes de se lançar os exércitos para além das fronteiras. Seja como for, Cornide, ilustre académico galego, morreu em 1803 e já não assistiu às invasões, Mourier não deixou rasto na história que pudéssemos seguir e Alenquer não teve a tal «guerra de postos muito sangrenta», mas ainda assim teve a sua guerra e sofreu muito com ela.
Como escreveu Guilherme Henriques, «pela sua proximidade às afamadas Linhas de Torres Vedras o concelho de Alenquer foi um dos distritos que mais sofreu na última invasão; já porque os seus habitantes entraram [foram] dos que tiveram de trabalhar para a construção dessas linhas; já porque esses mesmos habitantes tiveram de suportar as vinganças do inimigo quando retirou, não derrotado, mas com todo o vigor, e raivosos de ver os seus planos frustrados».

OS COMBATES DE ALENQUER EM 10 DE OUTUBRO DE 1810



Depois das vitoriosas terceiras campanhas austríacas, Napoleão decidiu invadir novamente Portugal. Para isso reuniu um poderoso exército de 80.000 homens à frente do qual colocou o seu «filho querido da vitória», o Marechal André Massena, Duque de Rivoli e Príncipe de Essling. Em Julho de 1810, depois de neutralizar Ciudad Rodrigo, Massena entrou em Portugal com 60.000 homens divididos por três Corpos de Exército: o II comandado pelo Gen. Raynier, vindo da Extremadura espanhola onde esteve em apoio a Soult, o VI do Marechal Ney que se havia posicionado em Salamanca e o VII, de Junot, que veio de Valladolid. A estes, juntavam-se três brigadas independentes dos generais Bonnet, Kellermann e Dorsenne, reservas de Artilharia, um corpo de engenheiros e unidades menores, não faltando uma gendarmerie de 177 homens.
Em terras portuguesas o primeiro obstáculo a vencer foi a praça-forte de Almeida defendida por 5.600 homens e 100 peças de artilharia. Ultrapassado este, Almeida caiu a 28 de Agosto, o exército francês entrou em marcha para Coimbra no dia 15 de Setembro. Mas antes de lá chegar, teve que se bater no Buçaco com as tropas luso-inglesas do Gen. Wellesley, avaliadas em 61.452 homens.
No Buçaco os franceses pagaram a derrota com 4.486 baixas, incluindo 5 generais. Pior do que isso, tomaram verdadeira consciência do que os esperava. Embora derrotados e com o moral em baixo, contornaram a serra por Oeste e inflectiram para Coimbra, enquanto os aliados de Wellington marcharam para sul, rumo à protecção das Linhas de Torres. Nesta sua retirada estratégica coube à Divisão Ligeira do Gen. Craufurd - 4.112 homens em 2 Brigadas de infantaria, cada uma integrando 1 Batalhão dos temíveis Caçadores portugueses, os «galos de combate» de Wellington – e à Brigada portuguesa de Cavalaria do major-general Fane, cobrir a rectaguarda portuguesa, acossada de perto pelos franceses.
Nesta retirada, por duas vezes a rectaguarda portuguesa e a vanguarda francesa contactaram, travando-se combates em Pombal e em Alenquer. À nossa vila chegou a 9 de Outubro a 1.ª Brigada Independente de Infantaria Portuguesa, comandada pelo brigadeiro-general Dennis Pack, composta por Infantaria 1 e 16 e Caçadores 1, 3 e 4, num total de 3.792 homens, e quando esta ainda aqui se encontrava chegaram os franceses do Gen. Montbrun.
Esse encontro descreveu-o Guilherme Henriques: «Contou-me por vezes o Marechal Saldanha, meu excelente padrinho, de saudosa memória, comandante, então, de Infantaria 1, que se recordava perfeitamente de estar no Largo do Espírito Santo, lavando as mãos numa bacia que a ordenança segurava, quando os piquetes recolheram batendo-se com as avançadas francesas que começavam já a descer as encostas em frente da vila. Travou-se combate para proteger a retirada do grosso da força sobre Sobral de Monte Agraço (…)».
Um outro testemunho deste combate encontra-se no livro “Adventures in the Rifle Brigade”, do Capitão Sir John Kincaid (assinala-se assim a presença em Alenquer da Divisão Ligeira de Craufurd, que incluía o 95th Foot “Rifles”):
«Na manhã de um dia de muita chuva e vento retirámos até Alenquer, pequena vila, ao cimo de um monte, cercado de outros mais elevados; e como o inimigo não se tinha mostrado na véspera, tomámos posse das casas, com razoável probabilidade de nos ser permitido o prazer pouco usual de comermos um jantar debaixo de telha.
Mas quando o arrátel (cerca de meio quilo) de vaca – que era a ração diária de cada praça – estava talvez meio cozido (…) vimos aqueles indefatigáveis (sic) mariolas, no monte em frente das nossas janelas, começando a cercar-nos com uma mistura de cavalaria e infantaria; soprando um vento de tal forma que a cauda comprida de cada cavalo estava estendida, em recta, e tocava o focinho do cavalo que o seguia, fazendo o efeito de todos estarem enfiados num cabo e rebocados pelo que vinha na frente. Umas poucas de companhias formaram e contiveram o inimigo enquanto o resto da Divisão se estava reunindo».

O “LAGARTO” EM ALENQUER



Tendo as tropas aliadas retirado para a segurança das Linhas, no dia 12, Montbrun avançou para Vila Franca de Xira e o VIII Corpo, do comando de Junot, seguiu de Alenquer para o Sobral de Monte Agraço, após o que Massena estabeleceu o seu Quartel-General na nossa vila - embora por pouco tempo - onde também montou hospital. Passados dias chegaria a Alenquer o Intendente Geral Lambert, que por aqui ficou até à retirada. Vejam, pois, alenquerenses, as “visitas” ilustres que tivemos. Mas faltava-nos ainda uma muito especial: O Lagarto.
Com a vida diabolizada pelo invasor, os portugueses, muitas vezes, vingaram-se torcendo-lhes os nomes. E foi assim que Guichard passou a Esguinchar, Pepin de Balliste passou a Pepino, Junot a Jinot e um certo Pierre François Marie Lagarde ficaria conhecido como o Lagarto, tão mal amado como Loison, o general dos três “emes”, mau, manhoso e maneta, que passou à história, precisamente, como o Maneta, à presença do qual se ia mas já não se voltava, daí o ainda hoje conhecido dito «foi para o maneta».
Pierre Lagarde, desde que após o “18 do Brumário” Napoleão o encarregou de organizar a gendarmaria, não mais deixou de ficar ligado à polícia, revelando-se uma espécie de “sempre em pé” imune às mudanças políticas. Veio para Portugal, pela primeira vez, com Junot, o qual em Lisboa o nomeou Intendente Geral da Polícia, em Março de 1808, ficando logo conhecido como o Intendente Lagarto.
José Daniel Rodrigues da Costa, poeta panfletário então muito conhecido, traçou dele este retrato: «Esse que teve em Lisboa / De Intendente a graduação, / Tinha toda a negação / Para fazer coisa boa: / Era má pessoa / E bem se viu no que fez: / Só de sinais tinha três, / Com que toda a gente se zangou, / Sempre o maldito mostrou / Ser ímpio, calvo e Francês».
Ora, quando se deu a 3.ª Invasão, Lagarde veio na “bagagem” de Massena destinado a reocupar funções policiais em Lisboa, todavia acabou por não passar de Alenquer. Ficaram conhecidas as cartas que ele foi escrevendo ao longo do percurso, particularmente uma de 27 de Outubro, escrita da nossa vila, na qual dá conta de todas as dificuldades encontradas: batalha do Buçaco, mau relacionamento de Ney com Massena e por fim, espanto e surpresa dos franceses, as Linhas de Torres. Aí relata que a cavalaria «quando chegou a Alenquer estava em mísero estado e não havia ferreiros nem material para ferrar os cavalos»[1], do mesmo modo que não havia madeira e quando dela se precisava havia que utilizar as vigas das casas, os moinhos estavam destruídos, não se encontravam ferramentas, enfim todo um extenso role de provações, fruto da política de “terra queimada” imposta por Wellington. Em resultado disso Alenquer ficou destruída. E a isso voltaremos.






[1] - “A III Invasão Francesa a Portugal vista pelo Intendente Pierre Lagarde”, excelente artigo do Prof. António Ventura na “Revista Militar”, n.º 2512 de Maio de 2011.

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