PUBLICADO NO JORNAL "A NOVA VERDADE" DE 1 DE MARÇO DE 2016
BENTO
PEREIRA DO CARMO - O FILHO ILUSTRE QUE ALENQUER ESQUECEU
Bento
Pereira do Carmo, aquele que foi o único primeiro-ministro que Alenquer deu ao
país, nasceu nos arredores desta vila no dia 29 de Março de 1777, filho de
gente humilde. Foram seus progenitores Feliciano Pereira e Maria Joaquina (da
Costa?), não se sabendo muito bem como adquiriu o apelido “Carmo”, havendo a
esse propósito quem sugira que tal aconteceu porque seu pai, moleiro de
profissão, trabalhava no Moinho do Carmo… Uma mera hipótese, que poderá
encerrar a resposta a uma pergunta muito comum: Pertencia ele à conhecida
família Oliveira e Carmo (ou ela a ele)? Sem certezas definitivas, porque mesmo
para os portadores dos apelidos “Pereira do Carmo” se tem revelado tarefa
difícil levantar a sua árvore genealógica, ousamos dizer que não, já que essa
descende de Joaquim do Carmo (1788), filho de António Rodrigues de Vila Chã do
Monte, Viseu.
Tendo
revelado desde miúdo grande capacidade para o estudo, decidiram os seus pais
fazer o superior sacrifício de o enviar para Coimbra, onde, em 1800, na
Faculdade de Direito se fez advogado, após o que regressou a Alenquer onde montou banca, como então se dizia. Por
pouco tempo, refira-se, porque em 1806 partiu para Ançã, hoje vila do concelho
de Cantanhede, para aí ocupar como magistrado o lugar de “juiz de fora”.
A
sua permanência em Ançã ficaria marcada por maus e bons acontecimentos. Se por
um lado foi lá que experimentou pela primeira vez a prisão e a perseguição,
também foi lá que conheceu a primeira grande mulher da sua vida com a qual se
casaria. Desde muito jovem partidário do liberalismo, foi preso em 1808 e
enviado para os cárceres do Porto acusado de jacobino[1],
aí permanecendo preso por alguns
meses. Libertado regressou a Ançã onde havia empreendido e executado obras de
reconhecido interesse público e onde o esperava a sua esposa, senhora já
entrada nos anos e muito abastada, que nutria por ele grande afecto. Em Ançã e
ao contrário do que naturalmente esperava, foi mal recebido, contando-se que
sendo perseguido num grande tumulto popular, a esposa o teria salvado atirando
mãos cheias de dinheiro à população em fúria.
Nesse
clima social efervescente, resignou ao cargo que ocupava tendo regressado a
Alenquer, onde permaneceu alguns anos dedicado à lavoura, e, certamente às
leis, até que, dando-se o pronunciamento de 15 de Setembro de 1820 foi chamado a
Lisboa para fazer parte do Governo Interino e da Junta Preparatória das Cortes
de que foi “secretário”, o que evidencia o grande prestígio que havia granjeado
junto do campo liberal.
Eleito
deputado às constituintes pela Província da Estremadura[2], viria a fazer parte da
comissão da “Constituição” com a missão de elaborar as bases da mesma e onde
teve a seu lado figuras das mais relevantes do movimento vintista[3]. Considerado um orador de
excepção, data deste período um seu discurso que a história do parlamentarismo
guardou, tendo o mesmo sido proferido no dia 13 de Julho de 1821.
Discutia-se,
então, o Preâmbulo da futura Constituição e explicava Bento Pereira do Carmo
porque motivo era necessário aí declarar que se redigia esta lei fundamental
para solucionar os males provocados pelo «desprezo dos direitos do cidadão, e
do esquecimento das leis fundamentais da monarquia».[4]Nesta extensa peça de
oratória, excepcional sob a óptica da História e do Direito, aí afirmou:
«Pelo nosso direito público as
Cortes da nação eram as competentes para concederem os pedidos e contribuições
necessárias às despesas públicas (…) Esqueceu-se este princípio da nossa lei
fundamental; e a nação ficou abismada numa dívida enorme [mal antigo…], que sem
dúvida custará grandes sacrifícios à geração presente. (…) A perda desta
prerrogativa [de serem os legítimos representantes do Povo a decidirem em tal
matéria] foi a que mais custou aos povos, que sempre protestaram e patentearam
a sua desaprovação por todos os meios que se lhes ofereceram».
E,
chegado a este ponto, o ilustre orador cita como exemplo um episódio que teve
como intérpretes os vereadores da sua terra natal ao tempo dos Filipes[5], precisamente em resposta
a um injusto aumento de impostos:
«Dos muitos exemplos que poderia
apontar estremarei um só por ser, porventura, muito pouco sabido. Um dos Filipes
tentou aumentar o cabeção das sisas[6] a despeito das solenes
promessas feitas em Tomar por Filipe II; e uma das câmaras deste reino (a da
vila de Alenquer), a quem fez a proposta, respondeu: que sonegar [entenda-se,
fugir a elas] sisas não era pecado, porque sem consentimento das Cortes foram
estendidas além do prazo, porque as Cortes as concederam; e que se não
convinham [concordavam] na legalidade das que estavam pagando, como era
possível convir no seu aumento? Rematavam esta resposta singular com uma
sentença, que muito folgaria ver gravada com letras de ouro nos pórticos dos
palácios de todos os reis: Não há rei rico de vassalos pobres, nem amado de
vassalos oprimidos».
Nestas
Cortes Constituintes (1821-1823), Bento P. do Carmo presidiu ao Congresso entre
Julho e Outubro de 1823. Nas Cortes de 1822-23 tomou assento como deputado
eleito pela Divisão Eleitoral de Alenquer como primeiro efectivo e como
primeiro substituto por Lisboa, mas estas não chegariam ao seu fim, já que em
Maio de 1823 ocorreu a Vilafrancada
que revogou a Constituição aprovada um ano antes. Quando este acontecimento se
deu, Bento P. do Carmo foi um dos 62 signatários que em S. Bento assinaram o
protesto lavrado contra esse movimento, facto que lhe traria dissabores, uma
vez que, logo que chegado a Lisboa vindo do Brasil, onde a Corte se acolhera aquando
da invasão de Junot, D. João VI ordenou-lhe que regressasse a Alenquer e daí
não saísse.
Nessa
situação se manteve Bento P. do Carmo até 1826 quando, então, regressou ao
Parlamento, novamente eleito pela província da Estremadura. Entretanto, ao
longo dos acontecimentos reportados, a sua vida particular conhecera profunda
modificação, pois em data que desconhecemos havia falecido a sua primeira
esposa e em 1820 havia já contraído matrimónio com D. Claudina Maria Martins,
senhora também ela de muitos bens, entre os quais a Quinta de Sans Souci (à
entrada de Alenquer, junto ao Bravo), enquanto no plano meramente familiar lhe
havia dado por descendência os filhos Alfredo em 1821, Adriano em 1822 e Adelaide
em 1824.
Mas
tempos muito negros se avizinhavam ditados pela tomada do poder, em 1828, por
D. Miguel. Preso, Bento P. do Carmo foi conduzido aos cárceres tenebrosos de S.
Julião da Barra onde permaneceu longos cinco anos, até 1833. Colocado em liberdade
assumiu a presidência do Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido o seu
primeiro presidente, e exerceu o cargo de Perfeito da Estremadura (1833). De Abril
a Setembro de 1834, ocupou o alto cargo de Ministro do Reino (hoje
primeiro-ministro), e quando em Setembro desse ano D. Pedro IV sentiu próxima a
morte, foi ele, por quem o soberano tinha muita estima pessoal e muita
admiração como jurista, o escolhido para redigir o real testamento considerado
uma peça extraordinária do género.
Fortaleza/Prisão de S. Julião da Barra
Até
ao eclodir do Setembrismo (1838),
quando sendo senador decidiu pôr termo à sua carreira política e recolher-se a
Alenquer para se dedicar à viticultura, Bento P. do Carmo ainda foi deputado de
1834 a 1836, vice-presidente eleito dessa Câmara em 1836 e administrador do
Banco de Lisboa.
Ao
correr da pena quisemos aqui deixar uma breve biografia deste ilustre
alenquerense que foi Bento Pereira do Carmo, mas, necessariamente, a este tema
ainda aqui voltaremos para aprofundar alguns aspectos da sua vida que
consideramos interessantes e merecedores de melhor atenção, como por exemplo as
células revolucionárias de Alenquer e a repressão miguelista, os seus
“escritos” sobre história local, outros que decorreram do seu interesse sobre a
cultura do vinho, ou mesmo sobre a sua descendência que, no caso do seu filho
Alfredo, dava para elaborar o guião para um filme de acção.
Terminando,
em Alenquer, atrás de Triana, existe uma Rua Doutor Bento Pereira do Carmo,
coisa pouca para uma vida tão preenchida e notável.
[1]
- Jacobino – Neste tempo, com os franceses “à porta”, este termo era pejorativo
e sinónimo de “defensor de opiniões revolucionárias e extremistas”, remetendo
para a Revolução Francesa e para a Maçonaria irregular e ateísta. Embora os
defensores do liberalismo se filiassem na Maçonaria regular e teísta de matriz
inglesa, não se livravam de ser metidos no mesmo saco ideológico…
[2]
- Elegeram deputados as províncias da Estremadura, do Minho, de Trás os Montes,
da Beira, do Além-Tejo e o Reino do Algarve.
[3]
- Manuel Fernandes Thomaz, Ferreira de Moura, Soares Franco, Pinheiro
d’Azevedo, Annes de Carvalho, Soares Castello-Branco, Borges Carneiro, Pereira
de Moura e o Bispo de Beja.
[4]
- Azevedo, Luís Manuel Prado de, “Discursos Parlamentares de Oradores
Portugueses”, Vol. I, Porto, Escriptorio da Empreza, 1878, pág. 191-200 (Citado
in “O Portal da História”).
[5]
- Com quem a vila conviveu mal por Filipe II a haver desanexado da Casa das
Rainhas para a entregar a D. Diogo da Silva e Mendonça, conde de Salinas e
governador do Reino, feito, então, Marquês de Alenquer.
[6]
- O “cabeção das sisas” era um imposto extraordinário anual para perfazer o que
não se recolhia das Sisas dos Bens de Raíz, necessário para preencher as
avenças com o Património Real.