PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE ABRIL DE 2016

IGREJA E CONVENTO DE S. FRANCISCO
                                


MEMÓRIAS DE UMA CASA SECULAR

Diz-se que “bom alenquerense” é aquele que não pode passar uma semana sem ver o “galo” da Igreja de S. Francisco… Hoje, para sabermos o tempo que aí vem, já não precisamos de perscrutar as alturas e ver para que lado ele está virado, mas, que seria de nós sem essa paisagem inigualável que contribuiu para o epíteto de «Alenquer Vila Presépio» dado à «vila branca» encimada pelo secular templo por muitos considerado o seu ex-libris?
Recuando ao séc. XVII, o franciscano Frei Manuel Esperança descrevia assim essa paisagem abençoada por Deus e pela Natureza:
«(…) o nosso convento hoje, está posto sobre uma eminência para a parte do Sul, senhoreando o castelo, que lhe responde do Norte, e com estas aparências ajudadas da vizinhança do rio, profundidade do vale, correspondência dos montes e outras coisas notáveis, tiveram alguns motivos para se persuadirem que Alenquer se assemelhava muito à Santa Cidade de Jerusalém e que o Monte Sião no nosso convento estava representado”.[1]
Pois foi nesse «Monte Sião», onde já existiam uns antiquíssimos paços que, porventura, teriam sido já dos godos, e onde os mouros ocupantes teriam feito residência para os seus al kaides, que em 1220 sendo senhora da vila a princesa D. Sancha (filha do nosso rei D. Sancho I), por generosidade da santa senhora, os franciscanos Frei Zacarias e Frei Gualter, enviados ao reino pelo fundador da ordem, S. Francisco de Assis, dela receberam o seu palácio que, decorridos dois anos, era já singelo convento.
Ao lado desses paços transformados em casa conventual, existiria uma pequena e acanhada capela que, anos mais tarde, mereceu a atenção de uma outra donatária da vila, a rainha D. Beatriz (ou Brites) de Gusmão, consorte do rei D. Afonso III, que, em 1280, tendo alcançado do real esposo o padroado das igrejas e capelas do seu senhorio, decidiu transformar a pequena capela num digno templo[2], o qual não viria a conhecer acabado, pois faleceria em 1300 e a igreja só seria consagrada já no reinado de seu filho D. Dinis, no ano de 1305, por D. Frei Tello, Arcebispo de Braga e religioso da ordem franciscana.[3]
Do mesmo modo que a pequena capela passou a igreja, também o vizinho convento cresceu quando em 1280 D. Beatriz comprou um terreno que ofereceu aos frades para acrescento da cerca; D. Margarida Henriques (camareira-mor de D. Leonor, viúva de D. João II) também ofereceu terrenos que prologaram essa cerca até ao sítio da Mazagão ou Barroca (onde existiu uma ermida dedicada a Santo António, fundada por Nuno Gonçalves de Ataíde) e outros, frente ao convento. Do reinado de D. Manuel I são o Claustro e a Casa do Capítulo, cujos motivos lavrados no portal concorrem em beleza com os da capela dos Miranda/Henriques, na ala poente do claustro, com o chanfrado do arco renascentista lavrado em grotesco e fechado por um escudo com as armas do fundador, abrindo-se este para uma sala abobada com artesões rematados por três florões e um escudete de armas.
Da história deste templo franciscano consta, também, uma grande reparação mandada fazer por D. Manuel I, que de tão grande que foi tornou necessária uma segunda sagração que aconteceu no dia de S. Matias, corria o ano de 1547. Esta grande intervenção no corpo da igreja, mais a que houve no convento e que levou à construção, entre outras dependências, do Claustro e da Casa do Capítulo, levam-nos a pensar senão teria sido o grande terramoto de 26 de Janeiro de 1531 (para alguns estudiosos considerado maior que o de 1755) a sua causa próxima, já que Alenquer, face a testemunhos da época, figura como uma das terras mais atingidas por esse cataclismo.

DO TERRAMOTO DE 1755 AOS TERRAMOTOS POLÍTICOS DE 1820 E 1910



O terrível terramoto de 1755, que arrasou Lisboa, teve também em Alenquer consequências devastadoras possíveis de avaliar nas “Respostas” dos párocos locais ao “Inquérito” de 1758 ordenado por Pombal. No que respeita a S. Francisco diz o pároco de S. Pedro, Pedro da Silveira, que a igreja «(…) e parte dos dormitórios do convento também ficaram quase destruídos (…) Só a Igreja de S. Francisco se principia a fundar de novo».[4]
Na verdade, pelos mais diversos relatos, sabe-se que toda a zona mais antiga do convento, onde se incluía o dormitório dos frades e a enfermaria, ficou destruída, resistindo todo o Claustro quinhentista e algumas edificações próximas e mais recentes, tendo a Igreja anexa tido igual sorte.
Se o grande sismo causou profundos estragos no edificado deste conjunto, já as Invasões Francesas parecem tê-lo poupado, ao contrário do que aconteceu no vizinho convento de N. Sr.ª da Conceição das freiras clarissas, onde se aboletaram tropas que por descuido ou intencionalmente lhe largaram fogo, sofrendo ele estragos que levariam ao seu encerramento. Na sequência das invasões, quando se fundou o Real Celleiro para acudir aos agricultores necessitados, foi em duas salas do convento que se armazenaram os cereais e as alfaias, até o mesmo ter instalações próprias no Areal, o que leva a crer que a casa conventual funcionava.
Passadas que foram as invasões, as lutas liberais também trouxeram a Alenquer grande desassossego, após D. Miguel ter imposto o Estado absoluto. Na ressaca do falhado pronunciamento do Porto de 1829, os liberais alenquerenses foram vítimas do que hoje chamaríamos um megaprocesso. Quando as tropas absolutistas vieram do Porto pôr cerco a Lisboa, muitas foram as famílias da vila que a abandonaram refugiando-se na capital e muitos foram os que em S. Julião da Barra ou na prisão local padeceram tormentos por não terem seguido o mesmo caminho.
Tendo tomado o partido de D. Miguel, os frades de S. Francisco (e também os de Carnota) receosos abandonaram os conventos e seguiram o exército absolutista em debandada. No caso de Alenquer, só dois franciscanos por cá permaneceram, o «(…) guardião, padre Bento, que fixando a sua residência em Ota foi depois paroquiar para Abrigada onde faleceu; e um padre José, que foi ser capelão para o lugar do Camarnal; - bom padre que nas horas vagas, benignamente se prestava a levar e trazer missivas amorosas!».[5] Será essa a razão pela qual ainda hoje o Camarnal festeja o Stº António?
Tendo retirado os frades em 1833, o convento ficou devoluto e nunca mais funcionou como tal. Nessa situação entrou em decadência, a igreja deixou de estar ao culto, muitos foram os roubos e os desmandos. Entretanto, por carta de lei de 18 de Agosto de 1853, o convento foi cedido à câmara, com a sua igreja, para aí se estabelecer a sua matriz, o Hospital e o cemitério, cumprindo-se, em parte, o preconizado pelo administrador do concelho Albino Abranches de Figueiredo, em 1851, no seu opúsculo Memória sobre alguns melhoramentos possíveis da vila e do concelho de Alemquer.  

Cónego Joaquim da Silva

Conhecido é o legado de D. Maria do Patrocínio Bravo Pereira Forjaz, da Quinta do Bravo, em 1862, que permitiu acudir à igreja e ao convento, ambos em acelerada degradação, fruto de mais de trinta anos de abandono. Mas menos conhecida é a acção do cónego Joaquim da Silva que foi na Alenquer oitocentista uma figura de relevo. Em 1871 aqui chegou como pároco de Santo de Estêvão, em 1888 foi nomeado vigário da vara e em 1890 foi nomeado cónego honorário da Sé de Viseu. Homem dedicado ao ensino leccionou e preparou para estudos superiores muitos jovens alenquerenses (num artigo da revista O Ocidente se conta que já haviam colhido aprovação nos liceus de Lisboa e Santarém perto de 200), e, dele se diz que era orador sagrado como nenhum outro Alenquer havia conhecido, sendo por isso muito requisitado para festas religiosas, na capital inclusive.
Pois foi este eclesiástico que, estando a igreja muito arruinada, «(…)não obstante as reparações feitas no majestoso templo (…) nos últimos anos ele apresentava bastantes estragos do tempo, achando-se muito danificado o tecto e precisando também de pinturas», obras que mandou fazer à sua custa.
Terminamos com uma «desmemória». Olhando o actual excelente estado da igreja e do convento, obras do saudoso Padre Zé a que a actual Mesa da Misericórdia tem sabido dar continuidade, perguntava a mim próprio o que havia sucedido aos azulejos dos claustros e aos que faltam do refeitório dos frades. Pois bem, aos últimos levou-os a República na pessoa de um «provedor do Hospital da Misericórdia» que ordenou a um criado do mesmo que os arrancasse que por cada um pagaria quatro centavos. Só que o pobre coitado por cada um que arrancou inteiro escaqueirou vinte[6]... Os outros foram indo, ao tempo em que tudo esteve ao abandono.                                                           
                                                                                                             



                                                   








[1] - In História Seráfica dos Frades Menores de São Francisco da Província de Portugal, 1.ª parte, Cap. 10, Lisboa, 1656, p. 67.
[2] - Monteiro, J. P. Franco, As Donatárias de Alemquer, Lisboa, M. Gomes Editor, 1893, p. 20.
[3] - Costa, P. António Carvalho da Costa, Corographia Portugueza e Descripçam Topographica do Famoso Reyno de Portugal, Tomo III, Lisboa, Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706-12, p. 64.
[4] - Martins, Padre José Eduardo Ferreira, dir. lit. e transcrição, Alemquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, Alenquer, Arruda Editora, 2008, p. 42.
[5] - “Alemquer… n’outros tempos” in O Alemquerense, nº192 (15 de Novembros de 1891) e seguintes.
[6] - “Vandalismo no Hospital” in A Verdade, nº 7 (19 de Setembro de 1919), p. 2. Uma polémica que se prolongou por vários números e onde se nota a «delicadeza» de linguagem do seu então ainda jovem director Francisco Machado. 

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