PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE JULHO DE 2016

ALENQUER, O VERÃO, O RIO… E A MÚSICA!


Na sua obra “A Descrição da Cidade de Lisboa”, Damião de Goes abre um parêntese para, com enlevo e carinho, dar a conhecer a terra onde nasceu, e, nessa meia dúzia de breves períodos, inevitavelmente o rio ocupa lugar de relevo, o rio e a convivência dos alenquerenses com as suas «frescas águas que murmurando lava», no dizer de um seu ilustre contemporâneo (e conterrâneo?) Luís de Camões:
«Na base de Alenquer pois a parte principal dela está situada o cume de um monte bastante alto – nasce um rio, derivado de vários veios de água subterrâneos, muito ameno e abundante em pescaria, flanqueado de arvoredo em ambas as margens, que produz sombras agradáveis, durante o meio-dia e os fortes calores, às quais uma boa parte dos habitantes se acolhe».
Isto era assim no século XVI, mas, passados dois séculos verificamos no Diccionário Geografico do Padre Luiz Cardoso, que o rio continuava fresco e as suas águas apetecíveis, com fama de termais:
«Nasce nuns regatos ao pé da serra de Montejunto, e ajuntando-se perto do lugar da Espiçandeira formam o rio (…) até Alenquer onde toma o nome de rio de Alenquer, e com os olhos de água que recebe da fonte [nascente] do Perenal, e de outros, que aí se incorporam, engrossa muito a sua corrente; e passando por dentro da vila vai cortando na mesma direitura de Norte a Sul, algo inclinado ao Sueste.
São as águas deste rio medicinais, porque os seus banhos curam os achaques, que procedem de intemperanças quentes, e os males cutâneos a que chamam do fígado. Por ser este rio muito vizinho de Lisboa vai muita gente a ele tomar banhos no Estio, e ordinariamente costumam remediar as ditas queixas, ou seja, porque a sua água lhes aproveite com a virtude natural, ou por milagre da Rainha Santa Isabel!... Não tem casas determinadas para os banhos, mas costumam pela borda do rio fazer barracas em que as tomam”.
O que não deixa de ser curioso neste último escrito é a referência aos milagres da Rainha Santa Isabel, isto quatro séculos depois da santa senhora, porque lavava no rio as roupas e outros panos dos pobres que tratava no hospital que erguera junto ao seu paço do Espírito Santo, ter dado fama de santidade às águas do rio em que o fazia. Mas, milagres à parte, os mais velhos ainda se lembram dos Banhos Velhos, ali às Águas, onde hoje se situa o parque de estacionamento do restaurante. Aí ia tratar-se, ao que constava com sucesso, quem padecia de males de pele. E por tudo quanto já se disse, poderá concluir-se que foi por pouco que Alenquer não foi uma vila termal, qualquer coisa como… Caldas de Alenquer.



AS VERBENAS NAS ÁGUAS


 Sabemos, assim, que para fins termais, ou mero refresco, é longa de séculos a relação dos alenquerenses com o seu rio, mas… e a pura diversão? Fácil é imaginar quão agradável seria procurá-la nas margens do rio nos dias (e noites) de canícula. E terá sido seguindo essa linha de pensamento que em 1893 a recém-criada Caixa Económica Operária, em busca de uma receita suplementar, meteu mãos à obra.
Para que tudo resultasse na maior perfeição artística, ficou o sr. Manuel José Gonçalves Viana, ao tempo director da Escola de Desenho Industrial Damião de Góis, desta vila, encarregue de desenhar as barracas e ordenar o recinto, assim descrito pelo jornal local O Alemquerense:
«As barracas, desenho do sr. Viana que gostosamente tomou a direcção dos trabalhos, são de construção simples mas elegante, sobressaindo a barraca do bazar que é linda e revela um bom gosto da parte do artista que a delineou (…). O interior da barraca é forrado de panos de diversas cores, assim como o tecto que é em gomos simetricamente dispostos, que dão um tom alegre à barraca. Os coretos são altos, cobertos de motano [rama de pinheiro] e destoam do estilo da construção das barracas, pois são feitos com pinheiros toscos, havendo no espaço que medeia entre eles um circle para as crianças dançarem. Atravessando a ponte que há num lado do recinto fica o restaurant que se está concluindo». Para iluminar o recinto perspectivava-se uma «iluminação à moda do Minho e à Veneziana de grande efeito» que, afinal, «não deu o tal efeito que se esperava apesar de grande quantidade de lumes».
Mas, o grande divertimento tido como «o mais agradável para uma noite calma» era o barco, o «Pero de Alenquer» que podia transportar uma dúzia de passageiros, a «navegar rio acima até à Redonda ou Barnabé, ouvindo ao longe os sons deliciosos das músicas» e, deslumbramento, «quando regressamos, ao passar a ponte, ver de chofre as luzes reflectirem-se nas águas, serpeando, torcendo-se em caprichosos zigues-zagues, e por entre os eucaliptos a plátanos perpassando gentis vultos femininos envoltos em garridas toilettes, pondo uma nota alegre no meio da multidão que se agita, que ondula… Lindo!».
A animação musical, essa, estava a cargo das duas bandas da vila que tocavam ao domingo, prevendo-se, ainda, a vinda da “Fanfarra 1º de Maio” de Vila Franca de Xira. Mas, mau presságio, lendo-se o anúncio da abertura da “kermesse” lá estava: «Tocam as duas filarmónicas desta vila durante o dia e a noite. A abertura da quermesse é às 3 horas, sendo a entrada 20 réis. A comissão dos festejos pede a todas as pessoas que visitarem o recinto que se abstenham de fazer quaisquer manifestações às filarmónicas”. Tudo correu bem, até certo dia…


A GUERRA DO “CARTAXO” E DO “CHEGADINHO”



Por esses tempos, quem inflamava as paixões não era o futebol, eram as bandas filarmónicas. E em Alenquer havia duas: a Operária (actual SUMA) conhecida como Chegadinho e a União e Recreio popularmente denominada Cartaxo. Os campos encontravam-se extremados (e de que maneira!), quem não era cartaxo era chegadinho, e não se pense que a coisa era pacífica, como pode concluir-se lendo esta local do O Alemquerense:
«Para os leitores que não andem ao corrente da vida social, diremos que o título deste suello são os nomes de guerra das duas sociedades filarmónicas que actualmente disputam primazias nesta vila. Em vez duma emulação natural e sensata, existe uma animadversão entre membros duma e outra sociedade tendo cada grupo de filarmónicos os seus apaixonados, partidos ferrenhos, que conforme são executados [os números musicais] pelos da sua paixão ou os do partido contrário, assim aplaudem ou reprovam, palmeiam ou pateiam, sorriem ou voltam as costas. (…) Estas madurezas, porém, onde tomam o carácter mais sério é nos homens. Já tem entrado marmeleiro nas questões e ainda no domingo um partidário apanhou uma pancada na cabeça no meio da altercação, que o contundiu».
Ora, uma das mais sérias «altercações» viria a acontecer, precisamente, na verbena das Águas, num belo domingo de finais do mês de Junho desse ano de 1893 e, ao que parece, nem a frescura do rio evitou que os ânimos aquecessem:
«Tocou a filarmónica “União” desde a tarde no seu coreto e depois de um pequeno descanso preparavam-se para continuar quando pelas 9 horas chegou a filarmónica “Operária” e, contra o costume, não foi cumprimentar a outra com o seu hino. Vinham tocando uma marcha espanhola e dirigiram-se para o seu coreto quebrando a praxe estabelecida».
A partir daí começaram a tocar as duas ao mesmo tempo, vendo qual soprava mais alto, «um charivari medonho», como assinala o redactor do jornal O Alemquerense, enquanto no recinto as duas facções de apoiantes se dedicavam à «bofetada e ao empurrão». Perante o arraial armado, fechou o bazar e deu-se por terminada, por essa noite, a kermesse, já que o juiz da comarca, o escrivão da administração e alguns membros da comissão da festa, no seu intuito disciplinador, não foram atendidos pelas filarmónicas, a “União” presidida pelo sr. Moysés Carmo e a “Operária” pelo sr. Padre de Triana, Caetano Branco.
E foi a tocar que as duas filarmónicas abandonaram o recinto da Kermesse: «(…) primeiro a “União” que seguiu pela calçada da Várzea e rua dos Muros tocando o hino em frente da redacção do Damião de Goes , da residência do sr. dr. Juiz, da do sr. Ernesto e na sede da sociedade [na “Calçadinha, antiga ermida de S. Sebastião], e, depois, a “Operária” que foi pela rua Serpa Pinto e rua de Triana para a sua sede [na Arcádia]. Esta ainda tentava continuar e dar a volta à vila, mas obstou a isso o meritíssimo juiz de direito para evitar que encontrando-se as duas, houvesse conflito que necessariamente seria de péssimos resultados.

Como eram frescos e alegres estes Verões da Alenquer oitocentista…

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