PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE AGOSTO DE 2016
«Imediatamente fora da porta de Nossa
Senhora da Conceição há uma alta torre ou couraça que, nascendo da fundura do
largo da Fábrica de Papel vem quase alcançar o nível daquela porta, tendo de
altura, na frente, 18,60m». Assim se lhe refere o historiador Guilherme J. C.
Henriques na sua obra A Vila de Alenquer,
editada em 1902.
Outros autores, como o Padre Luiz Cardoso,
a ela aludem, mas de forma muito breve, fazendo notar que «por fora da porta do
Carvalho, e na sua barbacã, se levanta da margem do rio uma couraça» (1),
e, nas Respostas ao inquérito
pombalino de 1758, o prior da Várzea, João Martins da Silveira, também a ela se
reporta nos seguintes termos: «Na mesma barbacã há uma grande torre, que ainda
que muito alta não se chegou a acabar; é obra muito mais moderna que os ditos
muros, segundo nela se vê e uma inscrição que tem na face nascente com a data
do ano em que se fundou, que segundo ela, reinava o Senhor Rei Dom Fernando; e
dentro da dita torre havia uma copiosíssima fonte que embora esteja agora
entulhada rebenta para fora da dita torre de um rochedo, formando um ribeiro de
água claríssima, e excelente, da qual bebem quase todos os moradores da vila,
porque é muito leve e boa para a digestão» (2).
Ora, terá sido esta alusão do prior da
Várzea a uma inscrição que motivou Guilherme J. C. Henriques ao estudo da
vetusta torre, trabalho que empreendeu na companhia do General Brito Rebello e
de Jaime Ferreira. Aí encontrou o historiador «uma ou talvez mais inscrições»
das quais não tirou calcos nem conclusões satisfatórias «em consequência da
pouca profundidade da letra, que foi aberta, não em pedra, mas na argamassa, e
com um instrumento pontiagudo». Ainda segundo ele na já citada obra, «há partes
[da inscrição] enterradas na terra dos quintais da encosta; outras há que para
se poder ler, seria mister arrombar-se um pequeno pedaço de muro de suporte de
um dos terraços; e ainda outras só com o auxílio de uma escada poderão ser
examinadas».
Da leitura possível das inscrições retirou
o historiador que a torre terá sido construída no ano de 1383, logo, pela
rainha D. Leonor Teles quando se retirou para esta sua vila após a morte do
Conde Andeiro, ou, noutra leitura possível, em 1385, já em tempo de D. João I,
fazendo ainda notar que havia outras duas paredes que possivelmente já estariam
construídas, por serem diferentes na qualidade do material e na «mão d’obra». Noutro
lugar leu que a fez Álvaro Fernandes ou Pires, havendo um terceiro fragmento de
escrita que alude ao dia do mártir São Lourenço (8 de Janeiro) e os dizeres
«poendo se esta coiraça».
E não se sabe muito mais sobre esta torre.
Entre a lenda e a tradição diz-se que ela terá um primeiro nível de construção
que é contemporâneo do castelo original, logo do tempo da ocupação moura, tendo
ficado inacabada aquando da reconquista. Hipólito Cabaço, que também por ela se
interessou, acreditava que no seu interior existia a abertura de um túnel que
ligava ao interior do castelo, sendo por ele que, em caso de cerco, os
habitantes vinham à torre buscar a água de que a vila amuralhada tanto carecia.
Porém, muito procurou, mas nada encontrou, muito menos as duas arcas da lenda,
a do ouro e a da peste, nem tão pouco a «caveira de burro» algures escondida na
vila e que ele dizia brincando ser a causa que travava o progresso de Alenquer.
Admitindo que o nível inferior da
construção seja mourisco, portanto anterior à nacionalidade, bem poderia ele
ter sido uma estrutura de apoio ou de defesa do porto fluvial que por ali se
situaria, próximo de uma das portas principais do castelo, isto quando então o
rio ainda era navegável. Mas, deixando de parte especulações, parece pertinente
a opinião de João Pedro Ferro (3) que, a partir das
inscrições encontradas por Henriques, data a torre como sendo do séc. XIV,
enquadrando a sua edificação no conflito que opôs D. Leonor Teles ao Mestre de
Avis. O mesmo autor admite que o objectivo seria ligar essa couraça de
protecção à nascente de água que residia no seu sopé, ao pano de muralhas, o
que nunca terá acontecido.
Contudo, não seria essa ligação difícil
uma vez que a torre se situava mesmo em frente à porta do Carvalho, como era
então conhecida? Outra questão se pode ainda levantar: Porque motivo quando
mais tarde, em 1439, a rainha D. Leonor (viúva do rei D. Duarte) se recolheu na
vila com o seu filho o príncipe herdeiro D. Afonso, receosa dos maus intentos
(infundados) do seu cunhado D. Pedro o regente do reino, ao mandar reedificar
as muralhas do castelo, não concretizou essa obra de ligação da torre às
muralhas, uma vez que ela seria tão importante para resistir a um eventual cerco?
Mas estas são as interrogações que as abordagens aos factos históricos tantas
vezes se levantam sem que as respostas surjam.
O certo é que após Alenquer ter tomado o
partido de D. António, o Prior do Crato, quando este em 1580 se fez aclamar
rei, o seu castelo nunca mais foi conservado, iniciando-se então um período de
declínio que o terramoto de 1755 drasticamente acentuou e que a construção da
variante por dentro da vila (Rua dos Muros), em finais do séc. XIX, haveria de
rematar. Todavia, impassível à obra destruidora do tempo e dos homens, a Torre
haveria de resistir…
No início desse mesmo séc. XIX foi a torre
coroada com uma casa. Na Revista dos
Centenários de 1940, (4)
o Dr. Luciano Ribeiro que tanto se interessou pela história local, traçou-lhe
cruel destino ao anunciar que «a célebre casa da Torre – Torre da Couraça –
sobre a qual o mau gosto utilitarista do século passado foi construir uma
casita em substituição do seu terraço ameiado, vai ser também restituída à sua
primitiva forma». Não se descortina onde terá ele ido buscar essa ideia do
terraço ameiado, pois o mais certo é a casa ter sido construída sobre a torre
inacabada. Quanto ao «mau gosto utilitarista» ele não era bom, nem era mau, era
tão só utilitarista numa época em que as teorias da defesa do património ainda
não haviam feito o seu caminho. Todavia, a estética do Estado Novo não concebia
castelos ou torres sem ameias.
A casa não caiu conforme foi previsto quando das obras programadas por ocasião
das comemorações do duplo centenário, que limparam
o Arco da Conceição de acrescentos, também eles utilitaristas e levaram a
capela de Damião de Góis da arruinada Igreja da Várzea para a de S. Pedro, mas
cairia uns sessenta anos mais tarde, por desleixo do proprietário. Porém,
enquanto existiu, teve a sua vida, a sua história, que será oportuno recordar.
Assim, enquanto propriedade da Fábrica de
Papel, foi sede da sua administração e não será difícil imaginá-la como local
de reunião da célula revolucionária, uma das duas que em Alenquer alimentaram
os ideais do liberalismo em luta contra o despotismo absolutista, pois dela
faziam parte o administrador João António Simões, o seu filho José António, o
mestre principal António Gozano e seus dois filhos, escriturários, oficiais
papeleiros, operários, gente generosa e progressista que viria a ser
perseguida, deportada e enclausurada por secundarem os «rebeldes do Porto»
quando do levantamento de 1828. Do mesmo modo aí será fácil situar o seu director e grande vulto da Regeneração Fontes Pereira de Melo, logo
no relançar da fábrica em 1851, trabalhando pelo sucesso da nova Companhia do Papel de Alemquer.
Em finais desse século, quando as antigas
Casas da Câmara foram demolidas para construção do actual edifício dos Paços do
Concelho, foi na Casa da Torre que se instalaram os serviços municipais e as
diversas repartições públicas. Mais tarde, em meados do século XX, teve
consultório na casa da torre o médico Dr. Moura Gomes, recordado pelos mais
velhos como “um bom médico que não podia ver um pingo de sangue”. Depois foi o
declínio da habitação até ao seu desmoronamento.
Propriedade da Real Fábrica de Papel e da Companhia
de Papel de Alenquer desde 1802, em 13/05/1889 por escritura de venda
passou à posse da Companhia Portuguesa de
Fiação e Tecidos de Lã. Em 1900 por arrematação pública entrou na posse do
Banco de Portugal, tendo sido adquirida a este por António Francisco Ribeiro
Ferreira e por seu irmão Carlos Francisco Ribeiro Ferreira, quando o primeiro,
grande industrial lisboeta, assumiu os destinos da fábrica de lanifícios.
Em 23/03/1926, por partilha amigável com
seu irmão, António Ferreira tornou-se único proprietário. Em 19/05/1942 foi
inscrita por herança em nome de Carlos Alberto Machado Ribeiro Ferreira, filho
de António Ferreira e em 10/09/1971 foi novamente inscrita por herança em nome
de Laura Reis Ferreira Madeira Rodrigues e de Maria Emília Reis Ferreira de
Barros, filhas do anterior.
Depois, por sucessivas aquisições, foi
inscrita em 04/11/1992 em nome de Marcelo José Vaz Velho Rodrigues Feio e
Adelaide Albert; em 10/07/1995 em nome de Jeny Zélia Franco Lourenço Rodrigues
Martins da Fonseca e em 18/05/1999 em nome de Museu Temporário – Projecto(s) de
Arte Contemporânea, Lda. que ainda tentou aí implementar um projecto turístico
e tão só deixou ruir a casa.
Actualmente encontra-se à venda. Será que
ainda um dia a veremos propriedade da autarquia? Reconstruída a Casa bem
poderia vir a ser a nossa Torre da Memória – Arquivo Histórico Municipal,
enquanto o seu interior, com escada de pedra de cima abaixo, poderia albergar
um espaço museológico. Afinal, como disse um poeta, não «é pelo sonho que
vamos»?
(1)
– In Diccionario
Geografico publicado em 1747.
(2)
– Para facilitar a leitura adaptou-se ao
português actual.
(3)
– In Alenquer
Medieval (Séc. XII-XV), Cascais, 1996.
(4)
– In Revista
dos Centenários, n.º 24, de 31/12/1940.