PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE SETEMBRO DE 2016

ALENQUER TERRA DE VINHEDOS

Nos celebrados escritos de Bento Pereira do Carmo, ou, pelo menos, naqueles que o jornal O Alemquerense publicou em 1889 como sendo dele, O Vinho dá corpo ao mais desenvolvido dos capítulos. E não é por acaso, pois o distinto alenquerense para além de homem de leis, parlamentar brilhante e revolucionário liberal que chegou a sentar-se na cadeira de Primeiro-Ministro, foi também um grande vinhateiro, como produtor e estudioso da matéria.
Ditaram as circunstâncias da sua vida que, tendo enviuvado cedo, viesse a contrair um segundo casamento em 1820 com D. Claudina Maria Martins, proprietária de vastas terras a sul de Alenquer. Aí estabeleceu-se numa das quintas que baptizou de Sans Souci (Sem Cuidado) que haveria de transmitir a sua filha Maria Leonide Pereira do Carmo Chaves, que, com seu marido Davide Gonçalves Chaves, foi igualmente proprietária da quinta do Cobanco. Outras propriedades, cujos nomes os alenquerenses de hoje bem conhecem, surgem mais tarde na posse dos restantes filhos: Alfredo Pereira do Carmo que teve a Qt.ª. da Almadia e o Casal do Galo de Ouro (a seguir ao Cobanco) e Adriano Pereira do Carmo que foi senhor das quintas da Barradinha e da Provença onde, quando da Patuleia, à sombra do pavilhão francês montou uma base de guerrilhas, sendo isso já contas de outro rosário, das quais ainda haveremos de falar um dia…
Três paixões teve o conselheiro Bento Pereira do Carmo, a política, a história local e a viticultura. Prático e teórico desta última, colaborou com várias revistas escrevendo artigos técnicos ditados pela sua experiência como vinhateiro, a qual não passou despercebida à Academia de Ciências que ao reorganizar-se o colocou à frente de uma secção dedicada a este ramo agrícola. Regressando aos seus escritos, particularmente ao já citado sobre o vinho, aí encontramos matéria diversa e interessante. Por agora, respigamos aqui alguns parágrafos que mostram como é antiga a cultura da vinha em Alenquer e no seu termo:
«Por um decreto do séc. XIII, lavrado a 5 dos idos de Março do ano de 1209. 61 anos depois da tomada de Alenquer se conclui que as vinhas eram cultivadas em todo o seu distrito [simplificando, leia-se concelho] desde que a vila se uniu pela conquista ao todo nacional. Contém este documento a sentença arbitral que o cónego do Porto proferiu para acabar por uma vez com os motivos que traziam desavindos entre si o prelado e cónegos da igreja de Santo Estêvão desta vila; para o que repartiu entre eles os bens da Igreja (…)». Saltando o latim com que nesse tempo se redigiam os documentos oficiais, diga-se que, efectivamente, muitas eram as vinhas aí mencionadas.
«Na doação que a sr.ª infanta D. Sancha fez ao mosteiro de Cellas em Novembro da era de 1259 (ano de 1227), de parte do seu reguengo [propriedade real] nas vizinhanças desta vila, vêm as confrontações do mesmo com vinhas de vários proprietários.(…) Tenho presente certidão autêntica».
«O sr. D. Dinis possuía neste distrito [de Alenquer], vinhas, lagares e adegas com as suas cubas e tonéis; de tudo fez doação ao seu predilecto mosteiro de Odivelas, em 23 de Março de 1295».
Atestada a antiguidade desta cultura na vila e arredores, prossegue Bento Pereira do Carmo dando conta de disposições e posturas sobre o vinho e a vinha lavradas nos séculos seguintes.



AS QUINTAS DE ALENQUER

As quintas, entendendo-se como tal a unidade agrícola e a casa senhorial, são um património inestimável do nosso concelho, onde existem em número e beleza, arrisco em dizer, como em nenhum outro. A sua história de séculos é, regra geral, a história da viticultura. A partir da tradicional herança romana do pão, do azeite e do vinho (com o complemento da fruticultura e da pastorícia a quotas mais elevadas e não agricultadas), chegar-se-ia a um regime de quase monocultura onde a vinha se impôs.
Alcançada a última metade do séc. XVIII as quintas de Alenquer atingiram o seu auge de grandeza e delas saíram, também, figuras gradas da política concelhia e nacional, umas que nunca abandonaram a sua condição de vinhateiros, outras que singraram noutros ramos do saber.
Deixando de lado a figura notável de Sebastião José de Carvalho, visconde de Chancelleiros, por de mais conhecida, outras se poderão citar a título de exemplo, como Graciano Franco Monteiro da Qt.ª do Falou ou Qt.ª Nova, freguesia de Aldeia Galega, que ainda estudou leis em Coimbra mas viria a optar pela agricultura, a ele ficando a dever-se a introdução do eucalipto no nosso concelho (talvez o seu feito mais duvidoso…). Foi presidente da Câmara em três ocasiões distintas e à data da sua morte era procurador de Alenquer à Junta Geral do Distrito. Dele se disse que era um humanista, no que isso possa significar de dedicação à resolução dos problemas dos mais necessitados, tendo administrado a Misericórdia de Charnais e criado o respectivo hospital. Com o visconde de Chancelleiros e a baronesa de Lebezeltern legou à Ventosa um colégio para as meninas pobres da freguesia.
Por esse mesmo tempo, da sua quinta em Abrigada saiu então para Lisboa Mariano Cirilo de Carvalho, professor, jornalista e político arguto que das cadeiras de S. Bento, onde cumpriu várias legislaturas como deputado, haveria de passar a ministro da Fazenda (hoje Finanças) dos governos de Luciano de Castro (1886/9) e de João Crisóstomo (11891/2), onde chegou a ocupar interinamente o cargo de Ministro do Reino (hoje Primeiro-Ministro). Porque se movimentava muito bem nos bastidores da política e das redacções dos jornais, a capital haveria de o crismar como o “Poder Oculto”.
Prosseguindo neste recordar de homens ilustres que nos idos de oitocentos emergiram do concelho rural para carreiras e vidas que marcaram uma época, poderemos ainda aqui trazer os nomes de Rodrigo de Boaventura Martins Pereira (1842-1897), da Merceana, que logo como estudante de medicina se evidenciou, formando com Sousa Martins e Curry Cabral a “Trindade Esplendorosa” como lhes chamou uma Lisboa rendida ao seu talento e saber.
Não pense o leitor que aqui se esgotou a lista de gente ilustre que nos idos de oitocentos emergiu do Alto Concelho rural. Não, de maneira nenhuma. Acontece é que esta página que por vezes parece tão longa, tem de facto as linhas contadas e necessário se torna ainda falar de um outro alenquerense que muito deu à viticultura, já que esse é hoje o tema central.

UM LUTADOR CONTRA A FILOXERA



Entre os anos de 1883 e 1886, a praga que se mantivera circunscrita às vinhas durienses até ao ano de 1880, alastrou aos vinhedos da região de Lisboa, onde os concelhos de Torres Vedras e de Alenquer eram os maiores produtores de vinho. No nosso concelho encontrou o danoso insecto, que se alimentava do suco que extraía das raízes das videiras, adversários à altura. Pelo seu contributo nesse combate é sobejamente conhecida a figura do visconde de Chancelleiros, mas um pouco menos a de António Máximo Lopes de Carvalho (1852-1921).
Agricultor, político e publicista, Lopes de Carvalho nasceu na Quinta do Vale, na Labrujeira, no dia 21 de Julho de 1852, tendo como pais Joaquim Máximo Lopes de Carvalho e D. Ana Doroteia Perestrelo d’Andrade Cotta Bandeira.
Aos 18 anos deslocou-se para Lisboa para ocupar na Companhia de Seguros Bonança um emprego que nunca o satisfez, mas onde se manteve por seis anos deveras arreliado com essa sua «carreira de caixeiro de comércio», como lhe chamou. Tinha pois 24 anos quando abandonou os seguros regressando em definitivo à sua Qt.ª do Vale para se dedicar à agricultura, viticultura em particular e, a partir desta à ciência. Nesse âmbito colaborou em quase todos os jornais que dedicavam espaço à agricultura ao mesmo tempo que publicava as obras Notícia de alguns insectos úteis à agricultura (1879), Subsídios para ampelografia portuguesa (1885), Agricultores ilustres portugueses (1892), Ensaio sobre a entomologia portuguesa (1894), Manual prático da cultura das árvores de fruto de caroço (1894) e As melhores forragens – Vol. I e II (1898 e 1901).
A sua acção no combate à filoxera teve reconhecimento nacional, daí que tenha sido convidado para fazer parte da Comissão Central Anti-Filoxera do Sul do Reino, em 1883, vindo também a ser sócio correspondente do Instituto de Coimbra e da Real Associação Central da Agricultura. No seu concelho de naturalidade, foi um dos sócios fundadores do Sindicato Agrícola de Alenquer (entenda-se ”sindicato” como “associação”) com que em 1895 os agricultores alenquerenses procuraram fazer face à situação preocupante que a crise da filoxera os havia deixado.
Como político, no triénio de 1896/9, foi deputado pelo círculo eleitoral de Alenquer. Em 1896 fez parte da lista de Francisco Pedro de Oliveira e Carmo quando da sua terceira candidatura à Câmara local. Falecendo Francisco Carmo poucos dias após a tomada de posse, sucedeu-lhe Henrique António Campeão dos Santos, um republicano moderado pouco consensual na vila e no concelho. Nesse atribulado mandato Lopes de Carvalho foi vereador e vice-presidente da Câmara, sempre elogiado e considerado, mesmo quando o seu presidente era atacado ferozmente.
No campo das letras, escreveu três obras de carácter memorialista: Vida de Joaquim Máximo Lopes de Carvalho (1903), Notícia biográfica de D. Ângela Tamagnini d’Abreu (1906) e as suas Memórias Auto-Biográficas (1910). Como reconhecimento pela sua vida e obra foi distinguido com a comenda da Ordem Militar de São Tiago. Faleceu na Labrugeira no ano de 1921,

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