PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE DE 1 DE OUTUBRO DE 2016

OS HOMENS DA CARBONÁRIA

Assim, no plural, para que não se confunda com o título do excelente livro de Carlos Ademar, O Homem da Carbonária, historiador e escritor que escolheu o concelho de Alenquer para residir. E, na realidade, também porque serão dois os homens que aqui evocaremos, o alenquerense Luz de Almeida que organizou a Carbonária portuguesa porque «não bastava criar revolucionários, era preciso fazer atiradores», e um outro, Roque de Miranda, que o acaso do momento trouxe a Alenquer, nas vésperas do 5 de Outubro, para ministrar aos republicanos locais mais disponíveis para o assalto ao poder monárquico um curso acelerado de “Como fazer uma Revolução”.

O ALENQUERENSE DE QUEM NÃO SE FALA



Há nomes que escaldam, assim parece ser o de Luz de Almeida. Não se nomeia o nome ao santo não vá ele aí aparecer armado até aos dentes, exibindo o seu “sorriso acariciador”, expressão retirada de um panfleto de 1927 que anunciava uma homenagem nacional ao «homem que pelo seu valor moral e intelectual, tinha o incontestável direito a ocupar um alto posto dentro da República (…) e vive hoje quase miseravelmente, auferindo, como simples inspector das Bibliotecas Móveis o indispensável para não morrer de fome». Outro exemplo de “como as revoluções devoram os seus melhores filhos”…
Artur Augusto Duarte da Luz de Almeida, nasceu em Alenquer no dia 25 de Março de 1867, quando seu pai exercia nesta vila o cargo de regente escolar. Os primeiros anos da infância foram aqui vividos, tendo seis anos de idade quando a sua família se retirou para Lisboa, cidade onde fez o Curso dos Liceus e onde completou com distinção o Curso Superior de Letras.
Ainda universitário aderiu ao ideário republicano, vindo a presidir à Junta Revolucionária Académica, tida como a Maçonaria Académica e percursora da Carbonária. Completado o curso superior foi colocado na “Biblioteca Municipal”, na Rua do Saco, como ajudante do conservador da mesma. Data desse tempo o retrato que dele traçou Rocha Martins: «Aí por 1896 era já conservador da Biblioteca Municipal da Rua do Saco o republicano Feio Terenas. O ajudante era um rapaz magro, baixo, pálido, de poucas falas, sem gestos, sem vivacidade, sempre vestido de negro e com uma grande gravata Lavalliére pendente sobre o colete. A casa era um rectângulo vasto de prateleiras enfileiradas (…) ao lado ficava a sala de leitura e, no canto da janela que deitava para largo, tristonho, por detrás de um store corrido, o ajudante passava os dias lendo, muito compenetrado, com o seu eterno ar sereno, os olhos tão negros como o fato, ao erguerem-se, com ar resignado, quando o vinham interromper. (…) Nós não podíamos imaginar que em plena Lisboa, ali, no fundo daquela biblioteca, na pessoa tristonha daquele rapaz melancólico, estava um organizador».


A sua iniciação na Maçonaria deu-se em 1897, na loja Luís de Camões do Grande Oriente de Portugal, dissidência minoritária (1891-1909) do Grande Oriente Lusitano Unido, vindo a ser em 1900 um dos fundadores e Venerável da loja “Montanha”. Em 1908, com Machado dos Santos (futuro herói da Rotunda) representante da Alta Venda e com António Maria da Silva, representante da Venda “Jovem Portugal”, Luz de Almeida assumiria o directório da Alta Venda Carbonária com o grau de Grão-Mestre.
 Esta Carbonária, porque desde os anos vinte do séc. XIX houve mais do que uma, sendo a mais radical a anarquista, organizou-se a partir dos anos noventa e haveria de ser decisiva para a implantação da República, já que haveria de transformar-se num exército civil com efectivos que rondavam os 50.000 revolucionários armados, enquanto, noutra vertente, exerceu acção preponderante na doutrinação e sublevação dos militares. A esse propósito refira-se o pequeno folheto escrito por Luz de Almeida e intitulado A Cartilha do Cidadão – Diálogo entre o Médico Militar e o João Magala, que alcançou enorme sucesso entre soldados, cabos e sargentos, conhecendo por isso três edições.
Luz de Almeida não participou na revolução de 5 de Outubro, sofrendo, com isso, «o maior desgosto da sua vida, o não assistir à última etapa da sua acção revolucionária», pois encontrava-se exilado em Paris na sequência daquele que ficaria conhecido como “Crime de Cascais”, um ajuste de contas no seio da Carbonária que vitimou na Boca do Inferno um certo Manuel Nunes Pedro, episódio que serviu de pretexto para uma enorme acção repressiva sobre esta sociedade secreta.
Implantada a República, Luz de Almeida foi eleito deputado às constituintes, cargo que não veio a exercer pois deslocara-se ao norte acompanhado o Dr. António José de Almeida quando houve aí que organizar os carbonários para enfrentarem a primeira incursão monárquica. Luz de Almeida, que sempre serviu a causa sem se servir dela, faleceu em Lisboa no dia 4 de Março de 1939.

O OUTRO, O QUE VEIO DE LISBOA


Quando o moço do telégrafo entrou pela oficina e lhe estendeu o telegrama, Artur sorriu e apressou-se a abri-lo, demonstrando os seus olhos que havia gostado do que lera: «O primo de Lisboa chega hoje na diligência da tarde».
- Finalmente! – Murmurou enquanto estendia a mão ao chapéu e saía apressado na direcção da Rua de Triana. Aí entrou nuns quantos estabelecimentos deixando aos proprietários, discretamente, o mesmo recado:
- Aparece hoje na “adega” às 9,30 da noite para abrirmos uma garrafa e brindarmos à visita. – Dito isto despedia-se com um piscar de olho maroto e saía em passo apressado porque ainda tinha que dar um salto à Vila Alta.
Até aqui, caro leitor, puro romance. Mas o “bom primo” (assim se tratavam os carbonários) de Lisboa chegou efectivamente a Alenquer no dia 26 de Setembro de 1910, para, logo nessa noite, reunir com os seus familiares republicanos numa casa que Artur Ferreira da Silva tinha nesta vila e que de momento se encontrava desocupada.
À hora combinada lá estavam os convocados: João Carlos Sant’Ana, ajudante de tesoureiro da Fazenda Pública e por muitos anos maestro da Soc. Filarmónica de Alenquer, Joaquim Barral Dias, comerciante, Artur Gonçalves, comerciante, Joaquim Galvão, Januário Bento Pereira, albardeiro e colchoeiro, José Alves Fevereiro, comerciante.
Foram, pois, estes os convocados por Artur “Ségeiro” para a reunião com o homem da Carbonária que vinha da capital para organizar em Alenquer as “choças” deste movimento armado que por cá haveriam de secundar a revolução que implantaria a República, e nenhum deles faltou à chamada, já que eram todos gente decidida e dedicada à causa.
Mas quem era esse “bom primo” chegado da capital? Porque no Jornal d’Alemquer de 5 de Outubro de 1913 João Carlos Sant’Ana teve a feliz ideia de dar a conhecer este episódio, sabia-se que se chamava Roque de Miranda, tão só. Quis porém o acaso que ao aludirmos a este encontro num escrito publicado num “blogue”, uma sua descendente atenciosamente nos viesse a contactar dando-nos mais informação sobre esse dirigente da organização secreta.
De seu nome completo Roque João Adelino de Miranda, nasceu em Pangim-Goa, na então Índia Portuguesa, no dia 28 de Fevereiro de 1864. Tendo ingressado no Exército em 1883, veio a ser um dos sargentos de Caçadores que participou no “31 de Janeiro” do Porto, o sangrento e fracassado golpe militar que prematuramente intentou proclamar a República. Em 1899 tornou-se Despachante Oficial da Alfândega do Porto, profissão que exerceu até ao seu falecimento em 1931. Enquanto republicano revolucionário pertenceu com Carlos Kopke e Artur Santos Silva à direcção do conhecido grupo carbonário “Vedeta” que levou a cabo muitas acções. Foi filiado na loja maçónica “Montanha” do Grande Oriente Lusitano Unido, à qual igualmente pertenceram muitos vultos eminentes do republicanismo.
Em Alenquer, Roque Miranda presidiu a essa reunião como delegado do comité revolucionário e representante da Alta Venda, começando por iniciar na Carbonária este grupo de alenquerenses após os ter colocado ao corrente do que se projectava fazer. No já citado artigo, conta Sant’Ana:
«Quando ali entrei encontrei-os cheios de ardente fé na próxima proclamação da República prontos a sacrificarem a própria vida para fazer triunfar esse Ideal há tanto desejado (…) Joaquim Barral, um dos mais fogosos e exaltados queria a Revolução naquela mesma noite».

Como terá terminado esta conjura revolucionária? Suponho que esta será uma pergunta que o estimado leitor neste momento terá em mente. Pois bem, nada aconteceu. Roque de Miranda prometeu telegrafar em cifra, prevenindo do dia em que sairia a Revolução e enviar novo telegrama no dia em que esta estalasse. Porém «esses telegramas nunca chegaram porque o primeiro cuidado dos revolucionários de Lisboa foi apoderarem-se do telégrafo». Assim, a notícia da Revolução teve-a Artur Ferreira da Silva em Vila Franca de Xira e foi ele quem a trouxe para Alenquer onde o povo a recebeu «no meio do maior contentamento» (O Século – 9.10.1910): «As quatro fábricas de lanifícios fecharam bem como o comércio local. Os operários incorporaram-se no cortejo que percorreu algumas ruas da vila dirigindo-se aos Paços do Concelho onde uma comissão de indivíduos, entre vivas e palmas, içou a bandeira republicana».

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