PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE NOVEMBRO DE 2016
No dia 20 de Novembro de 1872, com júbilo
e muita solenidade, foi inaugurada a “Aula Conde de Ferreira”, onde, durante um
século, aprenderam as primeiras letras os rapazes da vila de Alenquer. Relata
Guilherme J. Carlos Henriques que «entre os oradores [nesse acto inaugural]
devem ser conservados em memória o então estudioso mancebo, Luís de Sousa
Nápoles, representante de uma família nobre e antiga deste concelho, que
habitava a quinta das Varandas, o digno juiz de direito, o presidente da
câmara, o doutor José Manuel da Silva Pimentel, distinto advogado nesta terra
[passados 10 anos seria ele o Presidente da Câmara], o professor José Pereira
de Moura [o primeiro a leccionar nesta escola] e outros».
Anoitecendo,
os festejos continuaram com iluminações e festa rija, tendo a filarmónica da vila,
chamada “Música Velha”, tocado no recinto da nova escola. À altura era
presidente da edilidade Venâncio José de Oliveira e Carmo, proprietário e
advogado de provisão em Alenquer, mas o impulso para a construção da escola, cuja
obra tivera início no ano anterior, veio do seu antecessor no cargo, o
merceanense Joaquim Francisco Franco, que havia falhado o abastecimento de água
à Vila Alta a partir de um poço aberto no Alto do Ventoso que não deu
resultado, mas não falhou o aproveitamento da verba de 1.200$00 réis do legado do
portuense Joaquim Ferreira dos Santos, o conhecido Conde de Ferreira.
O
LEGADO DO “BRASILEIRO”
Joaquim Ferreira dos Santos nasceu no dia
4 de Outubro de 1782 em Vila Meã, Campanhã, Porto, e faleceu no Porto no dia 24
de Março de 1866, data que aparece gravada na pedra do alçado principal das
escolas, abaixo do seu característico arco sineiro. Quinto filho de lavradores
pouco abastados de Vila Meã, tal como o seu irmão, o segundo em idade, ainda
frequentou o seminário onde estudou latim, lógica e retórica, vindo a abandonar
esse projecto de uma vida eclesiástica por falta de vocação.
- Conde de Ferreira
Foi então que, aos 14 anos, se empregou como caixeiro no Porto, adquirindo conhecimentos que lhe foram úteis no Brasil, quando para aí emigrou em 1800. No Rio de Janeiro, apoiado por um familiar, singrou na vida comercial «dedicando-se ao comércio por consignação de produtos enviados do Porto». Em muito pouco tempo estabeleceria relações comerciais com a praça de Buenos Aires, de onde lhe veio pouco lucro e um casamento falhado, após o que se virou para África, aonde se deslocou várias vezes, aí instalando feitorias e também um negócio negreiro, estimando-se que teria mandado de Angola para o Brasil cerca de 10.000 escravos, metade por conta própria ou em sociedade, outra metade como consignatário.
Foi então que, aos 14 anos, se empregou como caixeiro no Porto, adquirindo conhecimentos que lhe foram úteis no Brasil, quando para aí emigrou em 1800. No Rio de Janeiro, apoiado por um familiar, singrou na vida comercial «dedicando-se ao comércio por consignação de produtos enviados do Porto». Em muito pouco tempo estabeleceria relações comerciais com a praça de Buenos Aires, de onde lhe veio pouco lucro e um casamento falhado, após o que se virou para África, aonde se deslocou várias vezes, aí instalando feitorias e também um negócio negreiro, estimando-se que teria mandado de Angola para o Brasil cerca de 10.000 escravos, metade por conta própria ou em sociedade, outra metade como consignatário.
As suas simpatias pelas ideias liberais que
faziam progressos em Portugal, levaram-no a contribuir em 1828 com avultadas
somas em dinheiro para a causa constitucionalista de D. Maria II da qual foi
fiel partidário. Regressado a Portugal, estabeleceu-se no Porto como grande
capitalista e proprietário, tendo sido recompensado pela rainha com os títulos
nobiliárquicos de Barão (1842), Visconde (1843), e Conde (1850). Ingressando na
vida política activa durante o cabralismo,
ele que foi admirador, amigo e apoiante seguro de Costa Cabral, foi feito Par do
Reino por Carta Régia de 3 de Maio de 1842. Completando as dignidades recebidas,
foi ainda Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, Membro do Conselho de Sua Majestade a
Rainha D. Maria II, Comendador da Ordem de Cristo e ostentou a Grã-Cruz da
Ordem de Isabel Católica de Espanha.
Quando faleceu sem descendência tornou-se
em definitivo um benemérito, beneficiando com a sua enorme fortuna parentes,
amigos, colaboradores e inúmeras instituições, como a Santa Casa da
Misericórdia do Porto, Ordens Terceiras do Terço, do Carmo e de S. Francisco e
ainda outras no Brasil. Com o remanescente da sua herança foi fundado no Porto
o “Hospital Conde de Ferreira” para doentes do foro psiquiátrico, mas,
verdadeiramente importante para o Portugal inculto e analfabeto de então, seria
o seu legado de 144 contos de réis para a construção de 120 escolas.
- Escola de Alenquer
Ao estabelecer esse legado, o Conde de Ferreira fê-lo, como deixou escrito, «convencido de que a instrução pública é um elemento essencial para o bem da Sociedade» pelo que, afirma, «quero que os meus testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte casas para escolas primárias de ambos os sexos nas terras que forem cabeças de concelho, sendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor, não excedendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1.200$000 réis». Operacionalizando este legado, o Governo de Mártens Ferrão legisla sobre o equipamento escolar, publicando a Portaria de 20 de Julho de 1866 acerca da construção e equipamento das escolas do ensino primário e a Carta de Lei de 27 de Julho de 1866 que envolve as paróquias e os municípios nesse processo, sendo «as Câmaras autorizadas a contratar em termos com o testamenteiro do falecido Conde de Ferreira».
Na História
de Portugal, dirigida pelo Prof. José Mattoso, vem escrito que a escola de
Alenquer foi a primeira a ser construída, e interessante será vir a saber-se
porquê. Para tal, encontrou a edilidade um espaço no coração da Judiaria (mais do que Judiaria, vila intramuralhas), espaço
esse ocupado pelas ruínas da antiga igreja de Santo Estêvão, que alguns opinam
ter sido edificada pelo nosso primeiro rei D. Afonso Henriques sobre uma ainda
mais antiga mesquita. Com efeito, a igreja já desistira do templo quando em
1863 mudou a sede da paróquia para S. Francisco, deixando aí de ser rezada
missa, acto a que se seguiu a venda em leilão de «todos os objectos
susceptíveis de venda», como informa Guilherme Henriques. Em 1871 tiveram
início as obras da nova escola, e, ao jeito utilitarista da época, as paredes
da antiga igreja e outros materiais que lhe haviam pertencido, foram empregues
no novo edificado.
- Uma turma da escola de Alenquer de visita a um jornal lisboeta, nos anos 30 do século passado
Como já aqui se referiu, a Escola Conde de Ferreira funcionou até ao início dos anos 70 do século passado, quando, então, foram inauguradas as escolas da Chemina. Depois, durante breve lapso de tempo, serviu de sede à “ANP-Acção Nacional Popular”, organização política que se seguiu à “União Nacional” de Salazar. Com o 25 de Abril e a Comissão Administrativa presidida pelo Dr. Francisco José Vasques Ferreira, que teve no Pelouro da Cultura o Dr. António de Oliveira, instalou aí o Museu Municipal Hipólito Cabaço e a sua notável colecção arqueológica, mas esse espaço de cultura encontra-se encerrado há meia dúzia de anos, porque o vetusto edifício deixou de reunir condições para receber visitantes. Face à necessidade de obras profundas, o actual executivo camarário decidiu a transferência do Museu para a Casa da Torre, na Calçada Francisco Carmo, onde decorrem obras de adaptação do edifício à sua nova funcionalidade, proporcionando ao mesmo maior visibilidade e mais amplos espaços.
Concluído este processo ficará a Escola
Conde de Ferreira devoluta e à espera das obras que lhe restituam a dignidade
merecida. Como ouvi de uma amiga arqueóloga e amante da História local, «que
excelente local para instalar um Centro Municipal de História e Arqueologia».
Acompanho-a nesse desejo, imaginando a Conde de Ferreira com uma sala evocativa
da antiga escola, outras divisões com alojamentos e aptas para acolherem os
jovens universitários que aqui venham participar em campanhas arqueológicas,
com salas para tratamento e recuperação dos achados, com uma biblioteca
especializada, etc..
Ainda há muito pouco tempo, na abertura do
Congresso do Espírito Santo, o Dr. Pedro Machado, da Região de Turismo do
Centro (a que Alenquer pertence), afirmou que o futuro do Turismo em Portugal
pertence em larga medida ao Turismo Cultural. Alenquer - Vila com História, não
pode perder de vista esse segmento turístico, daí que deva trabalhar para
enriquecer o acervo das suas colecções museológicas, já que nesse contexto
ainda há muito para revelar sobre o seu riquíssimo passado. Isso mesmo o disse
recentemente uma equipa de arqueologia da Faculdade de Letras que, após visitar
o recinto do antigo Castelo, desabafou agradada que tinha ali trabalho para 10
anos.