PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE DEZEMBRO DE 2016

ECOS DA “MARIA DA FONTE” EM ALENQUER




Antes de mais, umas breves palavras sobre o que foi a revolução da “Maria da Fonte” que eclodiu no Minho, na Primavera de 1846, tendo como alvo o governo de Costa Cabral. A contestação focou-se inicialmente nas “Leis da Saúde”, em particular a proibição dos enterramentos nas igrejas.
Mas essa proibição terá sido, tão só, a centelha incendiária, pois as tensões políticas acumuladas desde a revolução de 1820 eram muitas e trouxeram ao de cimo o protesto contra outras medidas administrativas como o agravamento fiscal ou uma nova lei de recrutamento militar. Por outro lado, a declarada intenção governamental de construir um Estado moderno, promovendo reformas e obras de vulto, buliu com muitos interesses instalados que o despotismo característico do cabralismo atacou frontalmente.
Os enterramentos obrigatoriamente feitos fora do telhado protector das igrejas e o ódio às billhetas da contribuição predial estiveram presentes nos primeiros motins, que avassalaram o Minho e desceram a sul tomando conta das Beiras e da Estremadura. Quando se soube em Lisboa que no Porto e em Santarém se organizavam Juntas governativas, o alarme tomou conta da capital.
Por fim já se desafiava abertamente o governo dos Cabrais, e essa «revolução sem chefes» de cariz popular entrou numa nova fase levando a Rainha D. Maria II a equacionar a demissão do governo cabralino, decisão que veio a tomar quando viu o General Sá da Bandeira perfilar-se junto dos sublevados formando um exército, enquanto a seu lado surgiam reputados políticos como o Conde do Lavradio, Mouzinho de Albuquerque e José Jorge Loureiro.
O governo de Costa Cabral, duque de Tomar, caiu a 17 de Maio de 1846, sendo substituído pelo de Palmela. Tudo pareceu acalmar, mas por pouco tempo, até ao golpe palaciano da Emboscada que levou à queda deste e à ascensão de Saldanha. Em Outubro estava aí a Patuleia, guerra civil sangrenta, que opôs aos cartistas a facção extrema do setembrismo.

O CAP. LAURET E O BATALHÃO DE ATIRADORES DE ALENQUER

Poucos dias após os acontecimentos do Porto e de Santarém que desafiaram os Cabrais, transferindo o poder para Juntas revolucionárias, também a vila de Alenquer se pronunciou em apoio das mesmas, como, aliás, foi acontecendo um pouco por todo o país. A 22 desse mês de Maio de 1846, em apoio desse pronunciamento local, veio o Cap. Lauret, à frente de cerca de 100 homens armados, colocar-se ao serviço dos revoltosos de Alenquer chefiados pelo Major Manuel Maria Cabral.
Mas quem era e como aparece aqui este Capitão Lauret? Francês de nação, foi um dos militares estrangeiros que de Inglaterra vieram a Portugal combater a “Guerra da Liberdade”, como ficaria conhecida a feroz contenda travada entre os absolutistas defensores de D. Miguel I e os liberais ou constitucionalistas apoiantes de D. Pedro IV, que, tendo saído vencedor, veio a abdicar do trono a favor de sua filha D. Maria II.
Em Portugal, o Cap. Lauret comandou a 5ª Companhia do Batalhão dos Franceses de Peniche, o qual estava às ordens do Ten. Coronel Lucotte que, por sua vez, obedecia ao comando do Gen. Girolamo Romarino, um genovês que já havia combatido nas guerras napoleónicas e que após esta sua passagem por Portugal, em má hora se colocou ao serviço do Piemonte. Em má hora porque essa sua nova comissão militar veio a ter um desfecho dramático, tendo sido fuzilado por haver desobedecido a ordens, na batalha de Novara (1849).
Paulo Emílio Lauret entrou ao serviço da Rainha a 13 de Maio de 1833, e como ele próprio o referiu em documento existente na Biblioteca Nacional, portou-se «durante a Guerra da Liberdade com valor, que lhe granjeou todas as distinções possíveis», tendo, inclusive, sido ferido num braço numa escaramuça na Serra del Rei, o que não o impediu de entrar em Óbidos à frente de, tão só, 20 homens. Quando em 1835 lhe foram pagos os soldos devidos, assinou recibo onde constava um aviso de que deveria regressar ao seu país quanto antes, o que de todo não aconteceu, tendo escolhido Alenquer para residir, mais propriamente a Quinta de D. Carlos, próximo da Espiçandeira, onde se dedicou à agricultura.





Retomando os acontecimentos da “Maria da Fonte” em Alenquer, desta vila seguiram os pronunciados em coluna para Santarém «reunindo mais força pelos locais por onde passavam». Aí apresentaram-se à Junta da Estremadura presidida por Manuel da Silva Passos (vulgo Passos Manuel) que tinha na sua companhia Francisco de Paula Lobo d’Ávila. Recebidas ordens, regressou o Cap. Lauret a esta vila de Alenquer já como comandante do Batalhão de Atiradores, tendo sido o sr. Venâncio Carmo incumbido do pagamento do pré e do sustento dessa força. Outro Carmo (também ele antepassado da conhecida família Carmo da Qt.ª do Bravo) que aparece envolvido nestas movimentações revolucionários, foi o sr. José Joaquim do Carmo. Para administrador do concelho de Alenquer foi nomeado o farmacêutico Domingos José Afonso Pinto Pereira, um revolucionário liberal que com Bento Pereira do Carmo havia conhecido os tenebrosos cárceres miguelistas da fortaleza de S. Julião da Barra.
Em saboroso escrito publicado no jornal O Alemquerense, relatou uma testemunha que, no seu português afrancesado, o Cap. Lauret chamava aos seus homens a minha troupe, sendo esta sempre recebida com grande alvoroço quando regressava à sua base em Alenquer: «Havia nesta troupe um coisa com uma corneta que, não sabendo tocar, buzinava sempre que entrava na vila. Ouvida a bulha da corneta corriam uns a tocar o sino da câmara, outros os sinos das igrejas, em sinal de satisfação pela chegada da marcial e aguerrida troupe, distinguindo-se o sineiro da igreja de Triana, porque o bom do Prior Matias, que era considerado como afecto ao governo de Costa Cabral, recomendava ao sacristão que tocasse muito para que o não arguíssem de desafeição. Que cólicas teve por aquele tempo o Prior Matias!».
Com a entrada em funções do novo governo chefiado pelo Duque de Palmela, a troupe do Cap. Lauret seria desmobilizada. Mas, porque o mesmo veio a considerar que «foi vítima da sua honra, e oprimido pelo ministério transacto» em consequência da sua acção militar quando dos «acontecimentos populares em que espontaneamente se envolveu», promoveu a publicação de um opúsculo, atrás já citado, onde reuniu «(…) autênticos documentos que provem, que esses passos, esses serviços prestados em favor da Causa Nacional, foram sempre, e em tudo leais, francos e desinteressados, não tendo por toda a parte por onde transitou com a gente do seu comando feito a menor violência, e nem ainda a mais pequena exigência, sendo provocado, e instado [tido] pelas Autoridades como pacificador, e protector das mesmas Autoridades e dos Povos».
De facto, lendo esses documentos, é essa a conclusão que se pode tirar, mas não só. Por eles se toma conhecimento das inúmeras missões cometidas ao Batalhão de Atiradores de Alenquer que em dois meses, incansavelmente, cruzou a Estremadura de lés-a-lés, de Aveiras a Vila Franca de Xira, desta a Peniche, de Alenquer a Torres Vedras ou desta ao Cartaxo, colhendo das autoridades locais os mais sinceros elogios. Por todos, veja-se o que escreveu José Joaquim de Carvalho, Prior no Cadaval e em Aveiras, que se ofereceu ao Cap. Lauret para fazer parte do seu Batalhão e dele ser o capelão: «(…) como filho de uma Pátria de Heróis, deixa V. Ex.ª a agricultura, qual outro D. Nuno Álvares Pereira; chama os Cidadãos Portugueses, convoca os amigos da razão, rectidão e justiça, marcha na sua frente como valente Capitão, para lançar por terra essa cavilda de foragidos, portugueses degenerados, sanguessugas da desgraçada Pátria, outrora também de Heróis e hoje de ladrões».

AO JEITO DE EPÍLOGO

“Domada” a Maria da Fonte, teria sossegado o valoroso Cap. Lauret? Estamos em crer que não. Um ofício datado de Fevereiro de 1848 e emanado do Paço das Necessidades a mando da soberana reinante, anotado à margem como «confidencial», fala de «que sejam dali [do concelho de Alenquer] removidos o Major Cabral e o Capitão Lauret» por o «exigir a segurança pública do mesmo concelho». Verifica-se assim que tendo actuado como guerrilheiro na guerra civil da Patuleia, que findara alguns meses antes com a assinatura da Convenção de Gramido (29/6/1847), o irrequieto Cap. Lauret e o seu companheiro de muitas lutas Major Cabral continuavam a incomodar os cabralistas reinstalados no governo.
Com a pacificação da sociedade civil o Cap. Lauret acabaria por ficar por aqui, na sua quinta de D. Carlos. Não nos foi possível reconstituir todo o seu agregado e história familiares, mas muitas e elogiosas são as referências encontradas relativas a seu filho Paulo Alfredo Emílio Lauret, nascido a 11 de Fevereiro de 1850, na quinta da Espiçandeira. Foi este, no nosso país, um prestigiado pioneiro da ginástica desportiva e impulsionador da ginástica feminina, com vasta obra publicada sobre essas matérias. Paulo Lauret foi um casapiano (pormenor que leva a supor terem existido circunstâncias menos felizes nas vidas dos seus progenitores) de sucesso, tendo sido proprietário na cidade do Porto do ”Ginásio Lauret e Sala de Armas”, onde exerceu docência na Escola Normal.
Descendente directo do Capitão Lauret é o Capitão-de-mar-e-guerra, aposentado, Pedro Manuel da Cunha Saldanha e Albuquerque Lauret, valoroso Capitão de Abril e actual dirigente da Associação 25 de Abril.









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