PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE JANEIRO DE 2017
O REAL CELLEIRO DE ALENQUER
Na vila de Alenquer, no bairro do Areal,
situa-se o edifício do Real Celleiro,
hoje ao serviço de funções bem distintas daquelas que presidiram à sua fundação,
no início do séc. XIX, logo após as invasões francesas.
Procurando as origens destas instituições,
consultámos o estudo de Laura Archer intitulado "Propriedade e
Agricultura: Evolução do modelo dominante de sindicalismo agrário em
Portugal", e aí, nesse interessante trabalho, colhemos a informação de que
«no ano de 1576 foi criado em Évora o
primeiro Celeiro Comum, a mais antiga associação de crédito agrícola em
Portugal».
Estas instituições teriam vindo reforçar o
auxílio pelo crédito que já se praticava em Portugal desde o fim do século XV,
por intermédio das Confrarias e das Misericórdias. Segundo a autora citada, o
Celeiro de Évora inicialmente chamou-se Monte da Piedade - o Monte
era o fundo de cereal recolhido e a Piedade referia-se à generosidade
das doações – evoluindo essa designação, com o passar do tempo, para Real
Depósito, Real Celeiro e, por último, Celeiro Comum, acompanhando os demais que entretanto
surgiram, a mesma transformação semântica.
Ainda no século XV são fundados mais dois
Celeiros, um em Grândola e outro em Beja, para no século seguinte serem criados
onze, também eles no Alentejo. No séc. XVIII prossegue este movimento, e, se a
maioria dos 21 novos Celeiros identificados se situava nessa mesma região,
também os houve em Faro, Ponta Delgada e Bragança. No século XIX, até à
Revolução Liberal, continuaram a surgir Celeiros, e, à excepção do de Mértola,
todos nasceram fora do Alentejo, neles se incluindo os de Alcobaça, Alenquer,
Castelo Branco, Castanheira do Ribatejo e Torres Novas, todos eles visando
ultrapassar as graves dificuldades herdadas das invasões francesas.
Como funcionavam estes estabelecimentos?
Constituído um fundo inicial de cereal, os lavradores levantavam dele o
necessário para as sementeiras, ficando obrigados a pagar, em espécie, um
determinado juro que rondava os 4%. Não lhes eram exigidas outras garantias
para além de um termo de fiança. Deste modo o fundo inicial de cereal ia-se
renovando e mantendo.
A Revolução Liberal de 1820 e a Guerra
Civil que se lhe seguiu acabaram por ser fatais para quase todos eles, em
consequência dos abusos então cometidos. Por outro lado, a evolução da nossa
economia com o aparecimento das casas bancárias também contribuiria para o seu
desaparecimento. O Celeiro de Alenquer, como veremos, acabou por ser um caso
raro de longevidade.
UMA TÁBUA DE SALVAÇÃO PARA A DEPAUPERADA AGRICULTURA ALENQUERENSE
Uma placa que se encontra sobre a porta
principal do edifício do Real Celleiro remete a criação do mesmo para a
"Carta Régia de 26 de Julho de 1811" o que, sem ser mentira, não é
inteiramente verdade. Vejamos:
Nesta "Carta Régia", o Príncipe Regente D. João consigna as rendas das Alfândegas da Baía, de
Pernambuco e do Maranhão, para socorro aos seus vassalos habitantes das áreas
que mais tinham sofrido com as invasões francesas:
«Tenho
resolvido consignar, em cada ano, e por espaço de quarenta anos, a quantia de
cento e vinte mil cruzados, que serão deduzidos das rendas das Alfândegas, e na
sua falta de outras quaisquer (...) para serem única e privativamente
empregadas em benefício dos Meus Vassalos, que sofreram tão horrível ruína, já
edificando-se-lhes suas casas, já dando-se-lhes os instrumentos, sementes, e
gados, necessários para continuação, de suas lavouras, já
restabelecendo-se-lhes as Fábricas, e Casas das Povoações, e Cidades
devastadas». Este auxílio destinava-se também, como o refere a citada
Carta, «às interessantes Fábricas de Alenquer,
de Tomar e de Alcobaça».
Mas o genericamente disposto na Carta Régia de 1811 só ganharia consistência
com a publicação da Portaria de 25 de
Janeiro de 1812 esta sim, uma provisão governamental para a construção de
Celeiros, pelo que, com ela, nasceram os já citados de Alcobaça, Alenquer,
Castelo Branco, Castanheira do Ribatejo e Torres Novas.
Esta portaria, determinante para o
aparecimento do Real Celleiro de Alenquer, foi transcrita para um dos livros que repousa no Fundo desta instituição
alenquerense no Arquivo Histórico Municipal, e, da sua leitura, conclui-se que
estes celeiros deveriam funcionar imediatamente, não se podendo, de modo algum,
ficar à espera da construção dos edifícios que os deveriam acolher. Assim, para
tal efeito, em Alenquer foram utilizadas salas do Convento de S. Francisco,
arrendadas aos frades daquele convento franciscano.
O edifício que hoje conhecemos, esse só
deveria ter ficado construído em finais de 1813, princípios de 1814. Daí a
meados do século, tudo indica que o celeiro terá tido uma vida normal,
funcionando de acordo com os seus fins, ideia reforçada pela consulta ao seu
espólio, onde se encontram «Livros e cadernos de termos de fianças» que cobrem
um período longo, de 1812 a 1861.
Quando em 1852 - era Ministro da Fazenda,
Fontes Pereira de Melo - foi lançado um Inquérito ao estado destas casas,
revelando ele que a situação económica e financeira das 53 ainda existentes
era, salvo casos excepcionais, de relativo abandono ou mesmo de falência
(existiam, tão só, 144.000 alqueires de cereal concentrados em 6 ou 7 instituições).
No Distrito de Lisboa só o Celeiro de Alenquer evidenciava estar a funcionar.
Consultadas as actas da Câmara de Alenquer,
verifica-se que em 1868 foi arrendado pela primeira vez o andar térreo do
edifício, sendo este um primeiro sinal de que nem tudo ia bem. Depois, em 1875,
foi arrendado, também pela primeira vez, todo o prédio. Este facto
afigura-se-nos como uma verdadeira certidão de óbito da instituição Real
Celleiro de Alenquer.
A OUTRA VIDA DO CELLEIRO REAL
Mas, para além da sua função primordial, o
edifício veio a conhecer outras vidas. Em 1887 a Câmara, conforme sugestão da
Junta de Paróquia de Triana, aprovou planta e orçamento para adaptação do
prédio a escola, vindo esta a funcionar a partir de 1889. Esta escola
conheceria longa vida, até ao início dos anos 70 do século seguinte, quando,
então, foram construídas as actuais junto à antiga fábrica da Chemina, na Rua
dos Guerras.
Estando o imóvel devoluto quando da
Revolução de Abril de 1974, foi o mesmo transformado em «quartel-general» da oposição
ao regime caído, que, nesse espaço e por alguns meses, aí se reuniu para seguir
e tomar posição quanto às mudanças revolucionárias que o momento exigia.
Depois, à medida que os Partidos iam abrindo os seus centros de trabalho na
vila e os democratas das mais variadas tendências iam tomando partido, ficou o
Celeiro de novo deserto. Foi ainda aí que, então, o Partido Comunista
Português, única força política organizada saída da clandestinidade, reuniu os
seus militantes para as suas duas primeiras reuniões em Liberdade, as quais
foram conduzidas pelos dirigentes António José Veríssimo, que viria a ser o
primeiro presidente da Câmara de Vila Franca de Xira e Francisco Fernandes, que
seria eleito vereador da câmara de Torres Vedras.
Passado pouco tempo, o prédio viria a ser
sede da Cooperativa Colóquio que reunia muitos jovens dedicados a actividades
culturais como o Cineclubismo, o Teatro e a Música. Durante algum tempo foi o
velho Celeiro também sala de teatro e de outras actividades ligadas à Cultura.
Quando os pavilhões pré-construídos do Ciclo Preparatório, que funcionou no
parque das Tílias, ficaram devolutos, para aí se mudaria a Cooperativa
Colóquio.
Foi então que, passado algum tempo, o
vetusto Celeiro se tornaria sede e sala de ensaios do Rancho Folclórico de
Alenquer que, para a mesma finalidade, já havia utilizado as instalações da
SUMA na Arcada e o devoluto imóvel do Matadouro. Aí ficaria o Rancho de
Alenquer até à sua transferência para as actuais instalações na Romeira.
Transcorrido mais um longo período em que
se ia degradando a «olhos vistos», a sua sorte mudaria definitivamente em 2006,
quando após obras de reabilitação se tornou naquilo que é hoje: Portal da Rota
dos Vinhos da Região Demarcada de Lisboa e Museu do Vinho.