PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE FEVEREIRO DE 2017

DUAS IRMÃS, DUAS ACTRIZES ALENQUERENSES


       

Em conversa recente com um amigo entusiasta da História Local dizia eu que, em Alenquer, o Teatro tem fortes tradições e uma história que merecia ser contada. Bento Pereira do Carmo, nos seus Escritos, refere que em 1842 se representava no antigo Celeiro das Jugadas, demolido para a construção dos Paços do Concelho, acrescentando Guilherme Henriques que em 1863 aí «se construiu um teatrinho(…)». Já na segunda metade desse século representava-se na “Arcada” do Espírito Santo, sede da banda “Operária Alenquerense”; na antiga ermida de S. Sebastião, na Calçadinha, sede de uma outra banda, a “Cultura e Recreio”, e também no simpático “Ana Pereira” construído sob desenho de José Juvêncio da Silva, o “arquitecto” dos Paços do Concelho, anexo ao Clube Alenquerense, hoje Liga dos Amigos de Alenquer.
Mas, para além do teatro amador que se fazia para animar as tardes e as noites dos alenquerenses, também por cá passavam e demoravam-se, semanas ou mesmo meses, as companhias profissionais itinerantes. E tanto se demoravam, que as actrizes aqui acabavam por dar à luz os seus filhos, como aconteceu em Aldeia Gavinha, terra que viu nascer a grande Palmira Bastos e em Alenquer onde nasceu Adélia Soller, cujos progenitores, Alfredo Soller e Silvéria Soller, actuavam na Companhia Soares, dada à itinerância.



        Esta última, certamente pouco conhecida dos leitores é, por isso mesmo, merecedora de algumas palavras: Adélia Soller debutou ainda muito nova na companhia Soares ao serviço da qual percorreu o País, estreando-se depois no Trindade em Lisboa, onde pouco se evidenciou, daí transitando para o teatro Alegria, depois para o da Rua dos Condes e por último para o grande Ginásio. Esta actriz, alenquerense pelo nascimento, foi casada com o actor Sebastião Alves, que faleceu no Brasil em 1903. Todavia, Adélia pouco lhe sobreviveria, pois morreu nesse mesmo ano, também no Brasil, quando por lá fazia uma tournée com a sua companhia do Ginásio, vitimada pela febre-amarela que igualmente ceifou outros colegas seus.
Naturais do nosso concelho foram igualmente outras duas grandes actrizes, Margarida Clementina e Ana Pereira, duas irmãs sem antecedentes teatrais, que a história da Arte de Talma consagrou como das maiores do seu tempo.

A GRANDE ANA PEREIRA


De seu nome completo Ana Elisa Pereira, nasceu no dia 27 de Julho de 1845 no lugar de Cadafais. Filha de Maria Isabel Pereira e de Agostinho Lourenço Pereira, um lavrador de modestos recursos que trazia de renda ao Conde de Cunha, a Quinta da Carnota de Baixo. Tudo terá caminhado bem para este casal que contava já com três filhos, quando em certo dia, do ano de 1849, Agostinho Pereira cegou repentinamente. Sobre a ida da família para Lisboa, Guilherme J. C. Henriques, em artigo publicado no jornal O Alemquerense (n.º 295) de Outubro de 1893, conta que «com a cegueira de Agostinho Pereira veio a pobreza e, consequência de ambas, a morte. Tinha então Ana 11 anos e sua irmã 7. A falta de recursos obrigou a viúva a levá-las para Lisboa (e também a seu irmão Francisco Xavier que viria a ter a profissão de solicitador encartado), cidade onde terá arranjado um modesto emprego pela mão do actor Romão Martins ensaiador do Teatro Ginásio, teatro esse onde as duas irmãs «ganhavam alguma coisa ajudando ao toilette das actrizes».
Essa convivência com o meio artístico acabaria por levá-la ao palco desse mesmo teatro Ginásio, onde se estreou em 1861 com a peça dramática “Pecados do Século XIX” de Braz Martins, executando depois papéis importantes na “Escola de Mulheres”, “Lição de Noivos”, “Efeitos da Fotografia” e outras peças onde conquistou fartos aplausos. Quando em 1862 sua irmã Margarida seguiu para o Porto com Emília Neves, Ana Pereira fez igualmente «parte da companhia debutando na comédia “O que tem de ser”, na qual cantava um couplet que despertava vivo entusiasmo», aí começando a revelar grande talento para a comédia e para o teatro cantado.
Do Porto passou Ana Pereira a Coimbra, onde representou no teatro D.Luís, após o que regressou a Lisboa, vindo a ingressar, em 1865, na companhia do Príncipe Real, passando desta novamente ao Ginásio trabalhando nas peças “Honra aos Nobres” e Terra e Luz”. Em 1868 foi contratada pelo Trindade, teatro onde a sua estrela se iluminou com «a graça e a verve com que ela desempenhava os papéis mais divertidos no “Barba Azul”, “Flor de Chá”, “Boccacio”, “As Três Rocas de Cristal” e tantas outras óperas bouffes que faziam as delícias de então».
Uma doença profissional na laringe obrigou-a a uma paragem e a abandonar o Trindade, mas quando se formou a empresa Biester, Brazão & C.ª, foi contratada para o D. Maria II, estreando-se em 1874 com a comédia “Capitão Carlota”. Nesse teatro manteve-se até ao fim da companhia, transitando em 1880 novamente para o Trindade, quando aí se ensaiava um grande espectáculo com a peça “A Sexta Parte do Mundo”, a qual, contra todas as expectativas, veio a revelar-se um insucesso.
Atribuindo a si as culpas que, na realidade não eram suas, mas da pouca qualidade da obra levada à cena, tentou o suicídio ingerindo veneno. Esta tentativa de acabar com a vida, de que foi salva a muito custo, deixou-a diminuída e obrigou-a a afastar-se dos palcos por longo período, reaparecendo no Trindade, em Fevereiro de 1890, com um grande êxito, “O Rouxinol das Salas”, a que se seguiu a opereta “D. César”, aí conservando-se até 1894. Seguiram-se, então, actuações no D. Maria II, no Condes e no D. Amélia, após o que, por alguns anos, interrompeu novamente a sua vida artística. Em 1907, reapareceu no D. Maria II por curto período, vindo a abandonar definitivamente a sua brilhante carreira por considerar que a actividade teatral era já superior às suas forças. Esta grande actriz, que ainda participou num dos primeiros filmes portugueses “O Condenado”, faleceu em Lisboa no dia 24 de Junho de 1921.  

MARGARIDA CLEMENTINA, UMA ESTRELA FULGURANTE E FUGAZ



Quatro anos mais nova do que a sua irmã Ana, Margarida Clementina Pereira estreou-se no teatro, ainda miúda, em circunstâncias interessantes. Quando no Ginásio entrou em ensaios a peça “Probidade”, de César Lacerda, faltando uma criança para o desempenho da mesma, o actor Romão, sabedor dos progressos que Margarida havia feito no Conservatório, lembrou-se dela para o papel vago.
Debutando com sucesso, António Mendes Leal, outro nome importante da escrita teatral desse tempo, quis animá-la escrevendo a peça “A Menina Margarida”, interpretando a pequena Margarida Clementina o papel com o seu nome. Tendo alcançado esse espectáculo um enorme sucesso, viu-se a jovem artista guindada a novos papéis.
Em 1862, com apenas 13 anos, Margarida integrou-se numa companhia que Emília das Neves organizara para ir actuar na cidade do Porto, onde a representação da peça “Mulher que deita cartas” se saldou numa série de triunfos. Nessa peça Margarida Clementina representava o papel de “Paula” e dela se disse que «se não foi sublime, foi todavia inspirada, e teve muitas chamadas e ovações».
No regresso a Lisboa, em 1865, estreou-se no Príncipe Real na comédia “Dois pobres a uma porta”, agradando extraordinariamente. Nesse mesmo teatro seguiu-se a peça “Condessa Villar” onde «sobressaíam os seus dotes artísticos, a tal ponto que a atenção pública se fixou na formosa actriz(…)».
Passados alguns meses, a 22 de Março de 1866, contraiu matrimónio com um jovem e abastado industrial que lhe pediu para deixar o teatro, pedido a que ela acedeu. Correndo feliz o matrimónio e nada fazendo prever que a tragédia se avizinhava, Margarida Clementina viria a falecer no dia 18 de Abril de 1867 (farão em breve 150 anos), em consequência de complicações que sobrevieram ao seu primeiro parto.
E assim se resume a vida desigual destas duas grandes actrizes alenquerenses. Ambas alcançaram no palco a notoriedade que é devida aos grandes talentos e ambas viram a sua vida terminar em ambiente de grande e imerecida infelicidade.

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