PUBLICADO NO JORNAL NOVA VERDADE DE 1 DE MARÇO DE 2017
A
CASA DA TORRE
Agora que surgiu envolta em andaimes, aprimorando-se
para ser o futuro Museu Arqueológico, talvez seja a altura certa para aqui
falarmos dela. Situada na Calçada Francisco Carmo, vulgo Calçadinha, um pouco abaixo da igreja de S. Pedro, é um dos imóveis
mais antigos da vila.
O historiador Guilherme Henriques chega a
admitir que a sua origem remonta à presença dos romanos neste território,
dizendo: «(…) pode ser que fosse outrora, uma daquelas torres isoladas ou obras
avançadas» com que esse povo de grandes construtores defendia um ponto
nevrálgico das suas posições ou uma passagem dum rio. Sendo certo que o antigo castro na colina sobranceira à vila foi,
também ele, castrum romano (e mais tarde reduto fortificado do castelo medievo,
aí se situando a sua torre de menagem), é bem possível que tenha alguma
consistência esta conjectura quanto às origens da torre sobre a qual, mais
tarde, se edificaram as casas.
Outra hipótese já avançada é a de que esta
torre, pela fortaleza e envergadura da muralha «demasiado dispendiosa para ser
simplesmente um muro de suporte», talvez fosse, afinal, «o começo de uma nova
linha de fortificações, destinada a incluir na praça a fonte que fica próxima,
entre a Torre e a igreja de S. Pedro».
Quanto à habitação propriamente dita, o já
citado historiador dá a conhecer que «parece já existia em 1466 e que
pertencia, então, ao cavaleiro da Ordem de Cristo, Martim Telles, porque no
testamento com que falece, descreveu entre os seus imóveis na vila de Alenquer
a Torre que está junta com o forno do Capitão que é no arrabalde da vila, junto
às casas de João Cotrim» e «mais todos os pardieiros que estão atrás da dita
Torre contra a igreja de S. Pedro do arrabalde da dita vila». E não se estranhe
aqui o uso do termo «arrabalde», porque a vila era, tão só, a que ficava
intramuralhas, no bairro que hoje conhecemos como da Judiaria. E tanto era
arrabalde que, um pouco mais abaixo, se construiu a ermida de S. Sebastião, que
como todas com a mesma invocação, se situava fora das muralhas, no acesso à
vila fortificada.
MORADA
DE GENTE ILUSTRE
Com relativa facilidade consegue-se
estabelecer a linha de proprietários da Casa da Torre nos últimos duzentos anos,
sensivelmente. Assim, no último quartel do século XVIII aí encontramos Félix
José Leal Arnaut, que foi pai de D. Maria Máxima Leal da Cunha Arnaut que, no
oratório dessa casa, celebrou casamento com o Dr. Joaquim Pereira Fajardo de
Abreu de Azevedo, bisavô de Moisés Amílcar de Oliveira e Carmo o qual foi nesta
vila técnico da Fábrica do Meio, ou de Lafaurie, importante comerciante e
fundador e impulsionador da Sociedade Filarmónica União e Recreio Alenquerense.
Félix Arnaut chegou a Alenquer para aqui
instalar uma manufactura de cutelaria e armas brancas, tendo escolhido o sítio
da Romeira, farto de águas, para esse efeito. A sua oficina laborou,
efectivamente, mas, tal como se pode depreender da leitura do Livro do
Manifesto do Novo Imposto (1802) a sua produção ficou-se pelas facas de
sapateiro.
Mais interessante foi o seu percurso de
vida até se radicar em Alenquer. Natural de Lisboa, sendo a família paterna
oriunda de Penela e a materna de Guimarães e de Sesimbra, foi professo da Ordem
de Cristo, hábito que obteve aos dezasseis anos de idade, portanto ainda menor,
após ter pedido dispensa régia desse impedimento alegando que seu pai, o
capitão Francisco Dias Leal, familiar do Santo Ofício (e na família não era o
único, longe disso...), era também ele, professo da Ordem de Cristo.
Para esse fim, alegou ainda que estava de
partida para o Brasil, no primeiro barco que saísse de Lisboa (o que
efectivamente aconteceu), pois de lá tinha sido chamado por seu padrinho o
Conde de Bobadela, personagem influente, cuja evocação deverá ter sido
determinante para o bom sucesso do seu pedido. Ontem, como hoje, uma velinha
acesa fazia milagres…
Mais tarde, já em 1860, residia na Casa da
Torre o industrial Lafaurie. Auguste Lafaurie, oriundo da cidade francesa de
Orthez, nos Baixos Pirenéus, que para cá veio na companhia de seu irmão Pedro
Adrião e aqui fundou, em 1838, uma fábrica de lanifícios, a fábrica do Meio (mais tarde da Companhia) hoje desaparecida. Tanto sucesso teve este industrial
francês, que em poucos anos era dono de um imenso património imobiliário que ia
do rio a S. Francisco, Casa da Torre e antigo Convento das Clarissas incluídos,
tal como se pode confirmar consultando o seu testamento em livro próprio, hoje
no nosso Arquivo Histórico Municipal.
A talhe
de foice refira-se que as riquezas mundanas de pouco serviram na morte a
estes respeitados e estimados pioneiros da indústria alenquerense que jazem,
anonimamente, nos seus túmulos soterrados sob o alcatrão do parque de
estacionamento do quartel da GNR. A história é simples e conta-se rápido: Sendo
eles crentes da religião protestante, logo não podendo repousar no chão sagrado
do cemitério destinado em exclusivo aos católicos, providenciaram a construção
de um mausoléu situado em propriedade sua, onde foram sepultados, o primeiro
deles em 1869. As transformações urbanísticas entretanto havidas, tornaram
público um local que era privado, o do mausoléu, hoje despercebido sob o
asfalto.
UMA
CASA AO SERVIÇO DO SABER
Por morte de Auguste Lafaurie, que se
finou solteiro, os bens que este possuía passaram a sua filha «natural que
houve de Josefa Maria», D. Maria Carolina Augusta Lafaurie que também residiu
na Casa da Torre e a teria vendido a «João Marques de Sousa Ramalho irmão do
Rev.mº Prior de S. Paulo em Lisboa, que ainda a possui», isto em 1902, segundo
Henriques.
Durante este período e sendo João Ramalho
seu proprietário, de 1890 a 1897 nela funcionou a Escola Industrial Damião de
Goes. Esta escola nasceu por Decreto datado de 3 de Outubro de 1889 e, no dia
seguinte, quando a vila recebeu a notícia com muitos foguetes, o sr. Augusto
Graça, Vice-Presidente da Câmara «ofereceu em sua casa um copo de água a grande número de indivíduos daqui. Reinou grande
animação e foram feitos muitos brindes».
Compreensivelmente, Alenquer como vila
industrial regozijou-se com a criação da sua escola profissional. Escolhida a
Casa da Torre para acolher o recém-criado estabelecimento de ensino, após o
edifício ter sofrido as obras necessárias, a 1 de Outubro de 1890, em
consonância com o calendário escolar, a Escola abriu portas. Nesse dia, pelas
oito horas da noite e com banda de música à porta, «a União e Recreio que espontaneamente foi ali tocar várias peças do
seu repertório» foram recebidas as muitas individualidades convidadas pelo
professor e director nomeado, Manuel Gonçalves Viana, na presença das quais
decorreria uma sessão solene».
Esta Escola de Desenho Industrial que
tantas expectativas criara e na qual receberam formação mais de meio milhar de
alunos de ambos os sexos, fecharia em 1897. Mas, transcorridos mais 50 anos, o
bulício dos alunos voltaria à velha casa quando aí se instalou o Externato
Damião de Góis, o “Colégio”, que do ano lectivo de 1948/1949 ao de 1973/74, por
iniciativa da Câmara Municipal, aí proporcionou a frequência da Instrução
Primária e dos 1º e 2º Ciclos dos Liceus (até ao actual 9º ano) a muitas
gerações de alunos.
Já no século XX, também aí residiu o
arqueólogo Hipólito Cabaço e a sua numerosa família. Corriam então os anos 40 e
à Casa da Torre chegavam constantemente os mais variados achados arqueológicos
fruto das muitas campanhas então promovidas pelo distinto alenquerense.
Contou-me um dos seus filhos, que todos tinham de trabalhar na limpeza e
restauro das muitas peças descobertas, facto ao qual os jovens não achavam lá
grande piada e os levou a pôr em prática um estratagema: para abreviarem o
trabalho decidiram passar a enterrar no quintal algumas dessas peças. Daí que,
se um dia os quintais da Casa da Torre forem objecto, também eles, de alguma
campanha arqueológica, certamente que muitos doutos professores ficarão
surpreendidos com os achados…
Já depois de 25 de Abril de 1974 a Casa da
Torre acolheu algumas famílias vindas de África, na medida em que, sendo propriedade
camarária desde a sua aquisição a Hipólito Cabaço e encontrando-se devoluta, as
suas muitas salas proporcionaram habitação razoável aos regressados das ex-colónias.
Por último, em anos mais recentes e após obras de adaptação, funcionaram na
Casa da Torre alguns serviços camarários.
Ainda este ano a vetusta casa abrirá
portas como Museu Arqueológico, albergando a colecção Hipólito Cabaço e não só.
Ao público visitante serão oferecidas oito salas para exposição, sendo seis
para exposições fixas e duas para exposições temporárias, servidas por salas de
trabalho, de estudo e por um pequeno auditório. Aguarda-se com muita
expectativa esta nova etapa da já longa vida da Casa da Torre.