PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE MAIO DE 2017

MAIO MÊS DAS CEREJAS E DA FESTA DE MECA


Uma quadra popular muito antiga lembra precisamente isso quando diz: «Ó minha Santa Quitéria // lá da terra da cereja // Como estás encarnadinha // lá dentro da tua igreja». De facto, em finais de Maio, quando as vinhas já resplandecem de verde e a cereja já pinta nos vales circundantes, a aldeia de Meca veste as suas melhores roupagens para honrar a sua Santa Quitéria mártir, defensora de pessoas e animais contra o terrível mal da raiva.
A romaria, uma das mais antigas do concelho e do país, acontece anualmente no fim-de-semana que se segue ao dia 22 de Maio que no calendário religioso é dedicado àquela santa, uma mártir dos primeiros tempos do cristianismo, nascida no norte da Lusitânia quando os romanos ainda habitavam a sua Braccara Augusta.
Rezam as loas de um antigo círio, e a sua hagiografia não o desmente, que Quitéria teve oito irmãs gémeas a quem foram dados os nomes de Eufémia (ou Eugénia?), Marciana, Marinha, Vitória, Genebra, Basilisa (ou Basília?), Liberata e Germana, todas elas saídas do ventre de Cálcia, esposa de Lúcio Caio Atílio, um poderoso governante das terras do norte.
Desesperada com tão prodigioso sucesso, ou envergonhada(?) por tão despropositada fecundidade, também há essa versão, num tempo em que nem os mais ousados visionários vislumbravam sinais da inseminação artificial, Cálcia terá mandado matar as filhas. Haveriam elas de ser salvas de tal infortúnio por Santo Ovídio, arcebispo de Braga, que, não se sabe como, teve conhecimento de tal ordem, após o que as mesmas foram por ele baptizadas e educadas na fé cristã.
Mas se Quitéria escapou a uma morte prematura, não viria a escapar do martírio às mãos de um pretendente que a queria para esposa, condição que ela recusou veementemente por haver feito voto de castidade. Afinal foi esta a vida curta, singela e dramática de Santa Quitéria, um misto de lenda e de história, o mesmo manto nebuloso que cobre a vida da maioria dos santos desses tempos brutais onde o martírio estava ao virar da esquina e que, neste caso, de uma assentada, levou em glória para o reino dos céus todas as nove irmãs, filhas de Cálcia.

O TEMPLO E A SANTA


O visitante que vem a Meca à procura da sua igreja, ao entrar no largo e ao deparar-se com ela, não pode deixar de maravilhar-se. Como escreveu Francisco Câncio no seu “Ribatejo” ela «é bela em demasia para uma solidão daquelas». Na verdade, o que o visitante encontra não é uma singela igrejinha de aldeia, mas sim um majestoso templo barroco que «só pode ter saído das mãos do arquitecto real» como eu ouvi da boca de um dos maiores especialistas em História da Arte (e desse período), que lá levei numa segunda-feira, para ver a bênção do gado. Apanhado de surpresa, o meu amigo e professor interrogou-se a si próprio como era possível desconhecer a existência deste notável património e lá avançou com o nome de Mateus Vicente de Oliveira, o arquitecto da Estrela e de Queluz, como possível autor de tão maravilhoso projecto.
O curioso é que o tempo não guardou o nome do arquitecto de Meca, nem sequer um único papel do projecto riscado por ele. Em contrapartida, chegou até ao presente a lenda de que o mesmo não terá visto concluída a obra, pois morreu ao cair de uma das torres, quando vigiava a construção.
Não iremos descrever o templo pois são já muitas e boas as suas descrições, mas sempre diremos que ele nasceu nos finais do século XVIII por iniciativa da rica confraria local que, para tal, obteve a protecção e generosas esmolas da rainha D. Maria I. Foi ainda esta soberana que conseguiu do Papa Pio VI o privilégio de a mesma pertencer à igreja de S. João de Latrão em Roma, a catedral dos papas, e assim ficar em gozo de idênticas graças espirituais e indulgências que são atributo da famosa basílica romana.
Entrando no templo, ao fundo, no altar-mor lá está a milagrosa imagem de Santa Quitéria, a padroeira dos “danados”. Ainda segundo a tradição, a imagem apareceu no já distante ano de 1238, num oco de um espinheiro, na vizinha Quinta de S. Brás. Pequenina e “encarnadinha”, no saboroso dizer do verso popular, lá está ela, na sua igreja, para acolher os visitantes. Mas nem sempre lá esteve…
De facto, em 1891 desapareceu do altar e nunca se soube por onde andou. A notícia correu célere pela aldeia, pelos lugares vizinhos, pela vila e concelho, chegou mesmo aos confins do Alentejo de onde vinham muitos romeiros: Roubaram a Santa! Roubaram a Santa de Meca! Tal como noticiou O Alemquerense à época, «foi apontado e acusado como autor do rapto Rafael Luís Ferreira que tinha sido sacristão da mesma igreja e fora despedido quando a actual administração tomou posse depois de uma sindicância».
O tempo foi passando, o sacristão inocentado, o roubo esquecido e a santa substituída por uma cópia o mais fiel possível. Mas, numa manhã do mês de Janeiro de 1893, quando já ninguém o esperava, o prodígio aconteceu: «Quarta-feira pela manhã uma família de fora da terra foi à igreja de Meca apegar-se à nova imagem de Santa Quitéria em consequência de mordedura ou arranhadura de um gato que, diziam, estava hidrófobo. Franqueado o templo, o sacristão Maximiano foi correr as cortinas do nicho que encerra a santa. Mas eis senão quando, Luís Lisboa, surpreendido, exclama: - Estão na maquineta duas imagens!».
Consta do mesmo relato que o bom sacristão subiu à torre e repicou os sinos como se de um dia de festa se tratasse. Milagre! Milagre! Foi o grito que por todo o lado ecoou e «quase todo o povo de Meca e das vizinhanças acudiu em tropel ao templo para orar e contemplar a tão falada e antiga santa que estava na maquineta, junta com a outra santa, mas… (ó céus!) coberta por um manto de teias de aranha!...». E tudo acabou em bem, com Santa Quitéria no lugar que lhe competia, até aos dias de hoje.

A ROMARIA


Ainda me lembro de em miúdo ser arrastado, eu e a cesta do farnel, para o Alto da Cruz de Bufo para ver «passar povo para Meca», frase que nesse tempo e ainda hoje significa «ver, quando não há mais nada para ver». Já então não vi passar grande coisa, de vez em quando la vinha um carro puxado a cavalo ou a bois, rangendo e tilintando estrada fora, todo ornamentado de verduras e gentes. Na volta, já traziam as argolas atadas em fita de nastro, e as gentes, cansadas, haviam deixado a sua boa disposição na romaria. Diz-se que nesse regresso os moços cantavam: «De Santa Quitéria de Meca // eu te trouxe uma fitinha; // Se eu t’a dei ela é tua // mas não sei se tu és minha.», mas não me lembro de cantorias.
À festa de Meca vai-se ao domingo para assistir à missa, depois para ir aos «comes e bebes», à tarde ver sair a procissão e depois para ouvir a banda tocar no coreto enquanto se despejam uns tintos, ou umas cervejas se o calor for muito. E, a não esquecer, a fita de nastro e as argolas, agora já não tão gulosas, porque não empoeiradas.
Sobre a fita de nastro, já a cair em desuso, não há como voltar à prosa do Câncio: «Dali [da igreja] saíam todos a umas casas, dependências do templo, onde compravam metros e metros de nastro – do nastro bento, grande negócio para os festeiros e mordomos – para se atar ao pescoço dos animais, onde ficam até apodrecer e desfazer-se. O nastro é cor de rosa, um cor de rosa vivo. E basta, segundo a crença, ver-se esta fita ao pescoço dum animal para que outro estragado [entenda-se, raivoso] – como por aqui se diz – não se atreva a morder-lhe e a transmitir-lhe o mal».
Imperdível é a cerimónia da bênção do gado, à segunda-feira, depois da missa. Do alto do trono de pedra erguido no meio do largo, o padre de hissope em punho, acompanhado do sacristão com a sua opa vermelha que segura a caldeirinha da água benta, asperge generosamente os rebanhos de cabras e ovelhas, os bois, os gatos ao colo de suas donas, os cães à trela, os cavalos montados por garbosos cavaleiros e… maravilha dos tempos, os automóveis saídos do stande, que à vez entram na roda para dar as três voltas da praxe. Seguro por seguro, que o divino os proteja porque custam tanto a pagar e a água benta sempre é um bocadinho mais barata do que o prémio anual da apólice.
Romaria como esta não há, já lá dizia o povo «Senhora da Ameixoeira // metida numa charneca; // S. João da Castanheira // Santa Quitéria de Meca.». O santuário da Senhora da Ameixoeira desapareceu quase sem deixar rasto, o S. João da Castanheira lá está, afogadinho numa selva de tijolos, mas Meca? Ah! Essa continua linda e chamativa como uma roca de cerejas. Não falte. Viva e faça viver a tradição.

                                                                          





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