PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE JUNHO DE 2017

D. TOMÁS DE NORONHA, O MARCIAL DE ALENQUER



Pesquisando os naturais de Alenquer, entre eles encontramos muitos e valentes homens de armas, navegadores, homens de ciência, outros de leis, piedosos e cultos eclesiásticos, mas também, embora em menor número, ilustres homens de letras como Damião de Góis, o cronista mor do reino, e Luís de Camões (não desistimos dele), o vate lusitano. Procurando melhor, também um existe que nesta vila de Alenquer nasceu, que foi considerado por Jacinto Cordeiro, na sua obra Elogio dos Poetas Lusitanos, publicada em 1631, «um dos mais célebres poetas de seu tempo», logo suscitando curiosidade pela sua obra que, como se verá, não desilude, antes pelo contrário.

Efectivamente D. Tomás de Noronha nasceu em Alenquer em data incerta e por cá se demorou ao longo da vida, já que em verso são muitas as alusões a figuras e lugares da terra. Como o seu próprio apelido indica, «era da família nobilíssima dos Noronhas, senhores donatários de Vila Verde dos Francos» mais tarde representados pela casa dos Marqueses de Angeja, sendo seu pai um fidalgo escudeiro do rei D. Sebastião, neto do marquês de Vila Real. Muito ao seu jeito, quanto a esta ascendência ilustre, interrogar-se-ia o poeta: «E que importa nascer honrado e nobre // se a Fortuna me fez patife e pobre?».
E pouco mais se sabe da biografia do poeta, acrescentando os biógrafos que «casou com uma prima e, tendo enviuvado, casou pela segunda vez». Tudo o resto que marcou a sua vida, sabe-se “peneirando” os seus versos. Por exemplo que, tal como Camões, serviu como militar em Ceuta de onde veio com os dois olhos, mas não tão enobrecido pelas armas como veio o nosso príncipe dos poetas, pois é ele mesmo que, em jeito de anti-herói, confessa rimando que as maiores lutas que por lá teve foram… na cama, com as mulheres dessa cidade e praça de armas onde fez «(…façanhas notáveis // quando em valentices não // ao menos em disparates».
Também não se lhe conhece o rosto ou a figura, abertos em gravura ou pintados em quadro. Em verso, chega a confessar que «gordo estou, bem disposto e sem mazela» aludindo também ao seu «corpinho torto e o nariz comprido […] pernas delgadas como charamelas».
Embora os estudiosos da sua obra considerem que três quartos dos versos que escreveu continuem inéditos, apesar disso, ela é mais conhecida do que a sua vida.

UM PRECURSOR DO POETA BOCAGE




Antes de mais, revelemos onde poderá o leitor encontrar os poemas de D. Tomás de Noronha, dizendo que o fará consultando o V Volume da Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos Portugueses, antologia da poesia barroca publicada entre 1716 e 1728 sob a direcção de Matias Pereira da Silva, obra providencialmente digitalizada (logo de fácil consulta) pela Biblioteca Nacional.
Seguindo a ordem cronológica, encontraremos as Poesias Inéditas de D. Tomás de Noronha, «colectânea tardia e bastante parcial (onde os seus poemas pornográficos foram censurados) da sua obra inédita», obra que data de 1899. Em tempos mais recentes, há a assinalar uma edição crítica do manuscrito da biblioteca da Ajuda (só com poesias deste nosso poeta), tese de mestrado da autoria de Adelino Duarte Neves (1992) e, ainda, Poesias Inéditas de D. Tomás de Noronha de Teresa Paula L. Alves (1997). Também sobre este poeta existe uma Tese de Doutoramento em Linguística, da autoria de Anabela Leal de Barros (2008) intitulada “A poesia de Tomás de Noronha segundo a tradição manuscrita”. Ainda não a lemos, mas a curiosidade é muita e esperamos fazê-lo em breve.
Digo eu, mero leitor sem grande conhecimento dos estilos, que o barroco com as suas metáforas, hipérboles, jogos de palavras, perífrases, etc. quase sempre satura por excessivo que é. Mas, também é dado como certo que Noronha, considerado «figura singular, extravagante e boémia», foi o perfeito exemplo dos que sentiram o «ridículo do artificiosísmo que se fazia sentir nas composições literárias da época» pelo que «podou em oitavas heroi-cómicas, o estilo do seu tempo (…) dedicou-se, assim à sátira caricaturesca dos vícios, vergonhas e torpezas sociais em estilo quase sempre indecoroso e grosseiro».
Talvez haja um certo exagero nesta última afirmação (e os seus versos cá estão para falar por ele), mas não deixa de haver alguma verdade. Mendes Remédios, o seu censor, tem toda a razão quando diz que que «algumas [suas] composições são tudo quanto há de mais imoral na forma e nas ideias», concluindo que Noronha, o Marcial de Alenquer, pela sua poesia jocosa, «é poeta satírico de valor e merece por todas as razões o título de precursor de Bocage». Mas, continuo a dizer, mesmo nos seus poemas mais ousados, há uma certa delicadeza de linguagem coexistindo com «o longo erotismo de uma sedução de boudoir». Aprecie-se esta primeira oitava (de catorze) do seu poema intitulado “Do gosto dos Namorados”:
«Um chegar para a cama recatada, / fazendo mil meneios de escapar-se, / um pedir que a luz seja apagada, / um dizer que aos pés quer acostar-se, / um tirar o mantéu quase enojada / um vagaroso e tardo descalçar-se, / um culpar de apetite tão ousado, / um ai que nos ouviram! Que é pecado!» Diria, que encantador. Talvez por isso, o insuspeito padre Manuel Bernardes na “Nova Floresta” se lhe refira, elogiosamente, ficando-se por um inócuo «Dom Tomás de Noronha, fidalgo de discrição mui celebrada neste reino».
D. Tomás, oriundo de família nobre e rica, também viveu pobre como Bocage viveria tempos depois, fazendo versos por dinheiro ou lamentando da sua pouca sorte, a sorte dos grandes poetas. «Invocando verdades puras, que passo e sinto», Noronha implora do Duque de Caminha nestes termos:
«[…] ouça, meu senhor, Vossa excelência / que também para os pobres há ouvidos); / atento esteja um pouco, com clemência / às lágrimas, suspiros e gemidos / de um pobre que, com tanta paciência, / estas misérias conta, não fingidas, / no mundo nunca vistas nem ouvidas.».
Dizem os conhecedores da sua obra que terá escrito a sua poesia durante o período da dominação espanhola, logo entre 1580 e 1640. O ano da sua morte, esse é certo, foi em 1651.


O POETA E A SUA ALENQUER



Muitos são os poemas que demonstram que o poeta tinha com a sua terra natal uma relação muito próxima, pois certas figuras e acontecimentos locais serviram-lhe de mote. É disso exemplo o poema “A um letrado que julgava em Alenquer, e era casado com uma torta”:
«Mata o senhor licenciado / com o Direito que não sabe / e a mulher (não porque o gabe) / é torta, e mata de olhado, / pelo que tenho alcançado /que matam deste jeito, / se pode, ao que suspeito, / com muita razão dizer /que este marido, e mulher / matam a torto, e a Direito.».
Vários são os poemas em que interage com as freiras do Convento de Santa Clara, que houve lá em cima, abaixo de S. Francisco, no sítio da “Cerca”. De uma terá recibo este mote/pergunta: «Dizei-me cá uma verdade / Qual é mais do vosso gosto / estando vós numa grade: / discrição, ou um bom rosto?». A resposta de D. Tomás não se fez esperar:
«Respondendo a esta questão, / e às coisas do meu gosto, / pede-me a inclinação / para a grade, a discrição. / E para a cama um bom rosto.».
Um dos poemas em que melhor revela o seu humor teve por mote «A um bêbado sepultado junto a uma pia de água benta», coisa que por aqui aconteceu quando os enterramentos se faziam dentro das igrejas:
«Aqui neste posto escuro / jaz um bêbado que tinha / de beber sobre sardinha / ofício de beber puro; / Mas caindo de maduro, / sua sepultura inventa / junto à pia de água benta / porque assim quer desta sorte / ter por regalo na morte / quem vivo lhe descontenta.».
Para terminar, as desventuras de um tal Fernando Pó, moleiro que tinha uma azenha, por ali, na actual Avenida dos Bombeiros Voluntários, onde ainda nos dias presentes, seja inverno ou verão, corre farta água para o rio. Andava o dito moleiro de amores com a filha de um barqueiro e certa noite foi apanhado em casa desta pelo pai que lhe moeu os ossos com um remo. Ficam duas décimas por questão de espaço:
«Se acaso o que tenho ouvido / por esta terra assim é / senhor Pó, vossa mercê /cuido que o tem sacudido; / pelo que, tenho entendido / que, de hoje em diante, / já vossa mercê não será / Fernando Pó, mas só / Fernando que não tem Pó / pois tão sacudido está. (…) Quando em vossa casa agora / mói todo este lugar / ides vós na alheia buscar / quem vos moa lá por fora / e fora melhor partido / não terdes, Senhor, sabido / como agora tendes já / a diferença que há / de moer a ser moído.». 

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