PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE JULHO DE 2017

A IGREJA E CONVENTO DE SANTA CATARINA DE ALENQUER




É longa, de séculos, a história deste conjunto arquitectónico que aguarda o visitante a uma das entradas da vila e que por ele passa sem se aperceber lá muito bem do que se trata. Outros, mais ligados à terra, certamente já ouviram dizer que ali, naquele amontoado de casas velhas, está enterrado um rei de uma terra estranha. Mas serão muito poucos aqueles que já alguma vez ultrapassaram o modesto e quase despercebido portão que dá acesso aos claustros daí acedendo à “casa do capítulo”, última morada de um aventureiro feito soberano.
Igreja e convento têm uma história não só longa como acidentada, uma história que o leitor curioso pelas coisas do passado poderá encontrar, em fragmentos, na “História Seráfica” de Frei Fernando da Soledade, nas “Respostas” de alguns párocos ao inquérito pombalino de 1758, nas habituais coreografias do séc. XVIII, nos escritos de Guilherme Henriques e, muito bem contada, no “O Concelho de Alenquer”, Vol. 3, de António de Oliveira, António Guapo e P. José Eduardo, pág. 145 e seguintes.
Por isso hesitámos em trazê-la aqui. Simplesmente, ao traçarmos este périplo pelo património local, no intuito de uma sua maior divulgação, não podíamos, de modo algum, passar ao lado desta jóia do património alenquerense que urge retirar do esquecimento a que tem sido votada, o que irá acontecer em breve, assim acreditamos, porque Alenquer celebrou com o futuro uma aposta muito forte no turismo cultural.

DA SUA FUNDAÇÃO

As origens são incertas, como quase sempre acontece com tudo o que remete para as brumas dos tempos. Diz-se que, por ali, pela Horta del Rei, hoje Parque da Romeira, em tempos muito próximos dos da fundação da nacionalidade, terão existido duas ermidas, uma de invocação a Santa Catarina (a de Alexandria que viveu e conheceu o martírio no séc. IV e veio a repousar no Mosteiro Ortodoxo da Transfiguração, junto ao Monte Sinai – excluem-se, pois, Santa Catarina de Siena e a sua homóloga de Bolonha que viveram nos séc. XIV e XV), outra a de S. Jerónimo.
Quando Frei Gualter e Frei Zacarias vieram a Alenquer e aqui conheceram a princesa D. Sancha donatária da vila, deu-lhes esta por morada uma ou a outra, acreditamos que a primeira, pelo que em ano posterior a 1212 aí se estabeleceram esses piedosos monges fundadores da Ordem de S. Francisco, em Portugal.
Depois, em 1216, obtiveram eles da santa senhora o seu Paço para edificação do convento maior, hoje conhecido como de S. Francisco, pelo que essa sua primeira morada, em terrenos da Romeira sujeitos a inundações, veio a ser abandonada. Todavia, por ali teriam passado, também, os futuros Santos Mártires de Marrocos, também eles discípulos de S. Francisco, antes de se dirigirem a Sevilha, ainda nas mãos das gentes de Maomé, cujo governante os entregou ao rei de Marrocos que os martirizou. Aí ou pela vizinha ermida de S. Martinho (quanto a isto também existem vozes discordantes), que se situaria atrás do actual tribunal.  
Percorrendo terrenos mais firmes, no início do séc. XIV a propriedade destas terras foi de Lourenço Martins, copeiro de D. Dinis, e de sua mulher Maria Nunes, que teriam reedificado a antiga ermida ou erigido uma nova, instituindo capela e vínculo intitulado «morgado de Santa Catarina», ficando a administração deste legado na posse do Convento, dito Maior, de S. Francisco.
Depois, em 1422, a administração da capela ficou a cargo de João Gonçalves, que dela foi desapossado por D. João I, passando o morgadio para João Aires que faleceu em 1431, o que levou o Guardião de S. Francisco a entregá-lo a João Vasques (futuro secretário de D. Afonso V) que viu os encargos com a capela diminuídos e obteve do rei a mercê da administração do vínculo passar aos seus descendentes. Reza a história que, sem sobressaltos nem ocorrências dignas de registo, a sucessão deu-se dentro da normalidade até inícios do séc. XVII.
Chegados a este século então sim, surgiria o convento que hoje conhecemos, pequenino mas com todas as valências (como hoje diríamos) que caracterizavam os maiores. Era então administrador da capela Agostinho de Mendonça Peçanha, fidalgo da casa del Rei que descurou essa função, sendo por isso colocado sob a alçada da Relação de Lisboa. Antecipando-se a qualquer sentença, o Provincial da Ordem Franciscana Fr. Jerónimo da Madre de Deus desafiou-o a erigir um Oratório, o que o prevaricador aceitou por vir muito a propósito à sua incómoda situação.
Feita escritura a 23 de Setembro de 1620 e obtida a licença do Rei para reparação da Ermida e construção do Oratório, em Abril de 1623 iniciaram-se as obras que tiveram como mestre Frei André de S. Bernardino, um frade leigo que fora pedreiro, e assim nasceu o convento que hoje conhecemos abraçando a igreja. Olhando a construção do lado do Parque da Romeira, vislumbra-se «uma varanda alta e muito agradável da qual se logra o rio e a cerca», à qual apetece arrancar as pedras e o reboco que a fecham. Visitando os claustros, a nascente ficavam as celas dos frades, encostadas à igreja. A obra mereceu, então, as esmolas do Rei, de alguns fidalgos da Corte, de benfeitores vários e de Salvador Ribeiro de Sousa.

        A LENDA E O TÚMULO REAL



Como quase sempre acontece, no meio do claustro encontra-se um bonito elegante poço, ao qual se encontra associada uma lenda, mais uma das que se contam nesta «terra de sonho e de lenda», que também acalenta na memória colectiva a do Alão e a da Rainha Santa transformando rosas em dobrões de ouro. Reza ela que os frades não tinham outra água que não fosse a do rio, pouca no Verão, demasiado turva no Inverno. Posto isso, tratou um irmão leigo de meter mãos à obra escavando um poço, empreendimento que não satisfez os outros irmãos, pelos escombros que a obra espalhou pelo pátio do claustro.
Com ele ralharam, instando a que pusesse termo ao empreendimento e tudo deixasse em ordem. Vendo o seu trabalho perdido, refugiou-se o pobre frade na oração implorando por água aos céus, após o que animado desferiu mais umas quantas enxadadas que logo fizeram as águas brotar por cinco copiosas nascentes, desde logo associadas aos cinco mártires de Marrocos que por ali haviam passado.
Eram também cinco os irmãos que o santo retiro haveria de acolher, ou melhor, eram inicialmente quatro por determinação real, o que não agradou a Frei Jerónimo, o fundador, que aos quatro juntou um quinto que trataria do sustento e cura dos demais. Um belo subterfúgio, afinal.
Quanto ao túmulo real, esse está na Casa do Capítulo, hoje muito danificada, por ter servido como depósito de sal após o encerramento do convento o que, irreversivelmente, destruiu os azulejos que a revestiam. Trata-se do túmulo de Salvador Ribeiro de Sousa, um dos muitos aventureiros que pulularam pelas Índias e que foi Rei do Pegu, território da antiga Birmânia, actual Myanmar. 
Salvador de Sousa nasceu em Ronfe, Guimarães e, como muitos do seu tempo, passou à Índia acompanhado por dois irmãos que por lá haveriam de ficar. São imensas e descomunais as suas façanhas guerreiras contadas em livro pelo Padre Manuel de Abreu Mousinho sob o título de “Breve Discurso (…)”, ficando conhecido na história da Birmânia como Massinga, o que foi eleito Rei pelo povo do reino do Pegu.
Durante muito tempo desconheceu-se o lugar da sua morte, dizendo alguns que a mesma teria ocorrido em Guimarães, por onde andou quando do regresso à Pátria. Mas, esse era um lugar demasiado afastado de Alenquer, onde afinal repousava o seu corpo. Acreditavam outros que havia sido em Alenquer, e, por isso mesmo, aqui repousava para a eternidade. Mas Matos Sequeira, notável olissipólogo, desfez as dúvidas: Faleceu em Lisboa no dia 21 de Janeiro de 1631, «na Rua Formosa, tendo sido depositado nas Mercês» (Revista “Feira da Ladra”, Tomo I, 1929).
Em 1947 a Câmara Municipal adquiriu a José Gregório Ferreira da Silva e esposa, os claustros e a Casa do Capítulo. Outras dependências continuam nas mãos de particulares. Até um dia que tarda.




Mensagens populares deste blogue

PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE SETEMBRO DE 2017

STUART CARVALHAIS (1887-1961)