PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE AGOSTO DE 2017
E
A SERRA DE MONTEJUNTO AQUI TÃO PERTO…
Quando o calor aperta os olhos dos
alenquerenses resvalam para a sua “Serra da Neve”, enquanto a imaginação os leva
a essas alturas onde as massas de ar marítimo e húmido se cruzam com o ar
fresco dos seus 666 metros de altura, criando um microclima de eleição. Mas, melhor
do que imaginar é mesmo ir, por Abrigada ou por Vila Verde dos Francos, e
também por Pragança (para quem vem do lado de lá, do Cadaval), ignorando sempre
o GPS que tem por hábito mandar os visitantes para os estradões de terra batida
que sulcam as encostas da Serra, difíceis, mesmo para os “quatro rodas”.
Quem se atreve a subir às alturas de certeza
que não se arrepende. Seguramente não encontrará por lá a «passarola» do Padre
Bartolomeu que em voo mágico levou à nossa serra Blimunda e Baltazar,
personagens imortalizados por Saramago no seu “Memorial do Convento”, nem tão
pouco as éguas ágeis e resistentes que, segundo o romano Varrão, eram
fecundadas pelo vento, porque isso são ecos dum passado mítico, quando essas
proeminências se chamavam Monte Sacro ou Montes Tagro. Certamente, lá encontrará
sombras acolhedoras para estender a toalha do farnel, percursos pedestres para
dar bom uso às pernas, vistas de eleição se o dia estiver limpo e património
histórico singular, como a setecentista «fábrica do gelo».
Hoje há quem a conheça como a “Serra do
Diabo”, por atingir a tal cota de 666 metros, número esse tido como o da
“Besta”. Porém desiluda-se quem assim pensa, pois quem lá manda é o S. João
festejado em 24 de Junho pelas gentes de Cabanas de Torres que sobem a Serra em
romaria, e, mais que todos os santos, Nossa Senhora das Neves que lá no alto tem capela,
onde acolhe as gentes de Pragança que lá vão festejá-la no dia 5 de Agosto.
Mas, outros cultos subsistem, «os cultos da
montanha, os ouvidos e os olhos d’água, os tesouros e as grutas, os bichos e os
lobisomens, a murta e o alecrim, o leite e o mel, a caça e o pastoreio, e, o
ano das treze luas (…) notas soltas da memória da serra que se apaga e se
reparte pelos Casais e Aldeias de Montejunto», como um dia escreveu o meu
saudoso amigo António de Oliveira, no “Jornal de Alenquer”, ele, que era quem mais
sabia das memórias da Serra.
Efectivamente, na memória dessas gentes
ainda perdura esse calendário, não de doze meses mas de treze luas, do mesmo
modo que o boletim meteorológico para o ano inteiro era ditado pelas têmporas e pelas arremedilhas, as primeiras observadas durante os doze dias que
mediavam entre a noite do dia 13 de Dezembro e a noite de Natal, as segundas
entre a noite de Natal e o Dia de Reis. Como? Observava-se o tempo que fazia em
cada um desses doze dias e em cada uma dessas doze noites, e, fazendo-se a
média do que se via, logo se tinha o tempo que faria em cada mês do ano.
Sabedoria da gente da Serra, que sempre batia certa, segredos que ela só revela
a quem repetidamente a visita.
O
GELO QUE A CORTE RECEBIA
Como bem observou o olisipógrafo Matos
Sequeira, os Filipes, esses nossos soberanos que vieram da vizinha Espanha,
deixaram por cá três modas: a dos trajes negros, a dos coches e a da neve.
Citando-o, «a água gelada, chiando nos pucarinhos de barro, era uma gulodice
cortesã das tendas dos doceiros da Rua Nova, da Confeitaria, da Rua do Saco,
das antecâmaras do Paço e dos salões fidalgos».
E tudo terá começado com o nosso segundo
dos Filipes, quando este, em 1619, se decidiu vir finalmente a Portugal e a
Lisboa. Entre as muitas recomendações feitas ao Senado da Câmara, António
Soares, secretário de Estado, instava que «não faltasse a neve enquanto cá
estivesse o soberano». E como um desejo real é uma ordem, logo a edilidade
contratou com um certo Paulo Domingues que fossem trazidas a Lisboa quatro
cargas diárias de 24 arrobas.
Ganhava assim proeminência o cargo de neveiro a quem foram adiantados 500
cruzados e arrendadas duas casas para venda da neve, uma no Terreiro do Paço – o «Martinho da Neve», mais tarde
«Martinho da Arcada» - e outra às portas de St.ª Catarina. Tudo terá corrido
bem, e, como não podia deixar de ser, a Corte ditou a moda, pelo que a «neve»
veio para ficar, mesmo quando em Outubro, o rei que entrara em Lisboa nos idos
de Junho, se retirou para Madrid onde chegou gravemente enfermo.
Um pequeno parêntesis. Dessa enfermidade
real que se revelaria fatídica, muito se tem dito, e, sendo que a morte nunca
poderá ou deverá ser motivo para brincadeira, uma explicação para a doença foi
alvitrada que anda lá perto: Sua majestade terá falecido de… etiqueta. Ou em
consequência do rigor da mesma, «porque sentindo-se muito incomodado com o
calor dum braseiro, em Covarrubias, teve de o suportar enquanto não apareceu o
fidalgo, que pela sua hierarquia, segundo as praxes palacianas, era encarregado
de o fazer remover para outro lado».
Filipe II de Portugal, tido como
irresoluto, brando e apático, ao sair de Lisboa terá deixado os portugueses
desiludidos, pois haviam alimentado grandes expectativas acerca desta sua
visita. Para governar o reino nomeou Vice-Rei o Marquês de Alenquer, D. Diogo
da Silva y Mendonza e, para que nem tudo fosse mau, deixou os lisboetas
rendidos ao consumo da neve.
Para mim o mais intrigante é que, de
início, esta neve (mais propriamente,
este gelo) vinha de carro da Serra da Estrela até Vila Nova da Barquinha, e,
daí a Lisboa, de barco, alcançando a capital do reino, em pleno Verão, sem se
derreter! Mas não era só da Serra da Estrela que chegava ao porto fluvial da
Barquinha esta susceptível mercadoria, pois vinha também de outras localidades
serranas, nomeadamente do Coentral, na Serra da Lousã, onde os poços de
armazenamento se situavam a cerca de 1.200 metros da altitude, o dobro de
Montejunto.
Desses tempos a História regista nomes de
«neveiros» como os de Marco António Cacilano (1623), António Correia (1671),
Nicolau Vaz (1683) e o italiano João Baptista Rossati (1699). Em 1717 era
Eugénio da Cunha o «neveiro da Casa Real» e o contratador da neve o
sargento-mór Manuel de Abreu Henriques. Depois, em 1724, era António de Almeida
Lebrão o detentor do privilégio de fornecedor da corte. Marcos Álvares da Costa
e a francesa Catarina Picart seguem-se-lhe em 1753, assim como Julião Pereira
de Castro, cujo nome aparece inscrito numa lápide colocada na frontaria de uma
capela de invocação a Santo António (no Coentral, Lousã), a qual assinala que
«a mandou fazer Julião Pereira de Castro reposteiro do nosso reino da câmara de
sua majestade e neveiro da sua real casa em terra sua no ano de 1786».
O já citado Matos Sequeira confidencia que
a origem da popular «bicha» (hoje abrasileirada para «fila», por via de
dúvidas) remonta a 1671 e à multidão que assaltava a loja lisboeta de António
Correia na procura do gelo, à porta da qual foi necessário colocar um soldado
para manter o respeito. Ainda segundo o mesmo autor, com a neve vieram os sorvetes que «vendiam-se, não em copos ou taças de
vidro como hoje, mas em chícaras», sendo que «o de limão era barato; o de
almíscar era caro, o de coral devia de ser caríssimo; oscilavam entre um vintém
e quatro vinténs (ou oitenta réis)».
A
REAL FÁBRICA DO GELO, DE MONTEJUNTO
Este conjunto arquitectónico situa-se
atrás da unidade militar da Força Aérea (radares) e ao lado do parque de merendas
servido por um bar, por onde se acede à visita. O complexo data dos inícios dos
anos quarenta do séc. XVIII, quando em 1741 o francês Trofimo Paillete pediu
privilégio para exercer esta actividade. Era então contratador da «neve» Marcos
Álvares da Costa e a Câmara acedeu ao pedido. Os poços de Montejunto
construíram-se, mas o francês Paillete fugiu e deixou burlados em 40.000
cruzados, gastos nos poços, os seus dois sócios João Rosa e Pedro Facalanza.
Estes dois sócios viram-se, assim,
obrigados a assumir a empresa, enquanto Álvares da Costa mandava vir para o
Paço a neve. Em 1748, Carlos Mardel,
o famoso arquitecto, comissionado pela Câmara de Lisboa, foi lá ver o conjunto
edificado e passou certidão do que viu, «além dos poços, examinou os tanques, a
casa e outras obras que se estavam fazendo (…) as quais orçaram em 45.000
cruzados».
Quando então a fábrica funcionava, em
Setembro enchiam-se os tanques com água e, logo que o gelo se formava, o guarda
da mesma ia a cavalo até Pragança, aldeia próxima, acordar os «neveiros» ao
toque de corneta. Estes subiam a serra para partirem o gelo e carregarem os
fragmentos para os silos de armazenamento, onde eram conservados até à chegada do
Verão.
Depois era o transporte no dorso de animais
até se consumar a descida da serra, seguindo-se o transbordo para carroças que
levavam a mercadoria até à beira do Tejo. Gosta-se de contar que até à Vala do
Carregado, onde era transportada de barco até Lisboa, mas discordo (até ver algum
documento que me desminta), e teimo em dizer: o porto fluvial que nesse tempo
servia a região de Montejunto e de Alenquer era o de Vila Nova da Rainha, e
sê-lo-ia por mais dois séculos, pelo que era aí que ela era carregada nos
«barcos neveiros».