PUBLICADO NO JORNAL "NOVA VERDADE" DE 1 DE NOVEMBRO DE 2017

ALENQUER DEPOIS DA RETIRADA DE MASSENA




Com os seus três Corpos de Exército posicionados frente às Linhas de Torres, Massena desesperou pelos reforços pedidos. Ainda experimentou algumas escaramuças e mudanças de posições, que apenas o levaram a concluir que essas formidáveis fortificações ligando Alhandra ao Atlântico eram inexpugnáveis, ou, pelo menos, inultrapassáveis para as forças sob o seu comando, chamadas Armée du Portugal, de que faziam parte o II Corpo de Exército do Gen. Reynier, o VI do comando do Marechal Ney e o VIII de Junot, mais uma reserva de cavalaria sob o comando do Gen. Montbrun, assim como as habituais tropas auxiliares
O seu Chefe de Estado-Maior, o Gen. Fririon, tê-lo-á convencido de que os terrenos acidentados por eles ocupados não garantiam um posicionamento seguro, caso «o agressor [eles] se tornasse agredido», o que poderia vir a acontecer. Nesta situação expectante em que por um mês estacionaram, face-a-face, atacantes e defensores, desde a chegada das primeiras tropas invasoras às Linhas, no dia 11 de Outubro de 1810, a Divisão Clauzel (do Gen. Bertrand, Conde de Clauzel), a 1.ª do VIII CE de Junot, composta pelas Brigadas Ménard e Toupin, esteve disposta «nas alturas de Alenquer».
Quando finalmente Massena se decidiu a retirar para Santarém, ordenou que o II CE de Reynier deveria abandonar V. F. de Xira para ocupar uma nova posição entre Vila Nova da Rainha e as «alturas fronteiras ao moinho que está sobre a ribeira de Alenquer». Enquanto isso o VIII de Junot, chegando a Alenquer, deveria «lançar as suas tropas nas gargantas desta vila» para dar tempo a que a artilharia se posicionasse nas alturas de Aveiras. Previamente, nos dias 11 e 12 de Novembro, Massena evacuou os seus «doentes em hospital» em Alenquer, e a 13 mandou avançar para Tomar as suas reservas que se encontravam em Ota e na nossa vila.
Chegada a hora, a 14 de Novembro, Clauzel e os seus homens deixaram o Sobral e atravessaram o desfiladeiro de Alenquer protegidos pela cavalaria (Brigada Saint Croix) a qual estivera em Arruda e «por uma forte guarda de retaguarda postada sobre a altura que cobre Alenquer». No dia 15, a coberto de cerrado nevoeiro, o II CE de Reynier deixou V.F. Xira para ocupar as novas posições que lhe haviam sido determinadas, e fê-lo sem que do outro lado das Linhas tivessem dado por isso, evitando que Vila Franca e Castanheira tivessem sido incendiadas para retardar a perseguição, conforme as ordens recebidas. Abençoado nevoeiro.
Assim, Alenquer viu saíram os franceses e chegar os ingleses da Divisão Ligeira (Light Division) de Craufurd, com um efectivo de 4.112 homens (2 Brigadas de Infantaria e um Batalhão de Caçadores portugueses), que os seguiam de perto.

UMA POPULAÇÃO EM SOFRIMENTO



Retirando Massena para Santarém, acabou a invasão para os alenquerenses, mas não acabaram os seus tormentos. Por esse tempo, conta Guilherme Henriques da Carnota, «fazia-se diariamente, a expensas da oficialidade inglesa e nacional, um caldeirão de caridade a que acudiam trezentas pessoas por dia, e no qual se cozinhava as cabeças, pés e miudezas das reses que se matavam para sustento dos soldados».
Esta informação só por si é bem esclarecedora do estado de necessidade da população da vila e do concelho. A política de terra queimada imposta pelo comando inglês para retirar ao invasor qualquer sustento, fez grassar a fome e, nos campos, nem alfaias havia para trabalhar as terras ou sementes para o plantio.
Por outro lado, os de Alenquer e de outros concelhos vizinhos das Linhas de Torres, continuavam a trabalhar nesta importante fortificação, melhorando-a, não fosse a sorte das armas trazer de volta os franceses. Em carta dirigida ao Marechal Beresford, Conde de Trancoso, que se supõe de 1811 (Arquivo Histórico Militar), assinada por 25 cidadãos de Alenquer em nome dos «povos das quarenta e oito vintenas de que compõem o termo e vila de Alenquer», dirigem-se estes ao ilustre militar, que mais tarde veio a ser um dos três Governadores do Reino enquanto a Corte permanecia no Brasil, elogiando-o e relevando a acção dos alenquerenses na construção das fortificações, dizendo-se disso recompensados, pelo papel determinante que elas haviam desempenhado na derrota do inimigo:
«Quando em 1809 se começaram a construir as linhas de defesa de Alhandra e Torres Vedras, foram os Povos de Alenquer os que mais se esmeraram em fornecer numerosos destacamentos para a feitura desta grande muralha da independência nacional. Os seus esforços tiveram uma recompensa digna do zelo e patriotismo com que foram prestados: Os Suplicantes [peticionários] viram com prazer que toda a fúria dos exércitos franceses se quebraram nesta muralha da nossa liberdade;».
Todavia isso tivera uma consequência:
«(…) a devastadora invasão de 1810 apoucou os recursos dos Suplicantes: a guerra, a fome e as moléstias reduziram a mil e cem o número dos trabalhadores da vila e todo o seu termo; e os empregados públicos encontram a maior dificuldade em preencher os destacamentos que lhes são exigidos [para os trabalhos da] fortificação».
Recordam os peticionários que com a «memorável» batalha de Salamanca tinham os franceses sido arrojados para os confins de Espanha, mas, quando pensavam que a sua sorte havia mudado, tal não acontecera, pois:
«Um destacamento de trezentos homens é todos os quinze dias enviado do termo de Alenquer para trabalhar nas linhas de fortificação, empregam-se as medidas mais violentas para completar este número, chegando-se ao extremo de prender na cadeia pública as mulheres dos muitos desgraçados que desamparam seu país natal [que deixam a sua terra] e se retiram para as povoações vizinhas para se remirem de tamanho vexame; os que faltam por algum motivo legítimo são taxados arbitrariamente em mil e seiscentos e até dois mil réis para pagamento de quem por eles trabalha nas ditas fortificações».

UMA QUEIXA SOBRE O ESTADO DA AGRICULTURA




 E prosseguem os peticionários dando conta da sua situação, agora da agricultura que lhes haveria de garantir o sustento, e onde se verificavam alguns abusos por parte dos mais poderosos:
«A Agricultura, Exm.º Sr. esta actividade fecunda da prosperidade pública (…) foi a primeira que se ressentiu dos efeitos daquelas medidas. Um termo que tem mais de trinta léguas quadradas, não é possível cultivar-se só com oitocentos homens que ficam disponíveis da massa total da nossa população. Alguns proprietários ricos e mais acreditados na corte, procuraram e obtiveram isenções e privilégios para os trabalhadores que amanhavam os seus prédios; mas estes privilégios agravaram o mal em vez de o remediar, porque redundaram todos em prejuízo da parte não privilegiada dos habitantes».
E o texto prossegue com os «Suplicantes» expondo a situação em que se encontravam os proprietários e jornaleiros mais modestos:
«Seguiu-se daqui que muitos prédios não se cultivam por falta de braços, e que os terrenos mais pingues [férteis] se convertem em baldios com grave dano do público e dos particulares, que não colhendo o fruto das suas terras mal podem satisfazer as contribuições e tributos destinados a manter a guerra.
Por outro lado Exm.º Sr., o miserável jornaleiro, que só tem o seu braço para sustentar-se, a si e à sua desditosa família, não pode preencher estes deveres sagrados com os mesquinhos dois tostões que se lhe pagam nas Linhas e que apenas chegam para o seu diário passadio (…)».
Terminam estes alenquerenses, chamando a atenção para o que se passava com os seus vizinhos mais próximos, como que esperando igual tratamento ou uma melhor repartição do esforço:
«(..) todos os lugares e vilas comarcãs de Norte e Sul do Tejo, como Salvaterra, Benavente, Azambuja, Aveiras, Alcoentre, e muitas outras não têm fornecido um só homem para trabalhar nas linhas; (…) não há motivo algum razoável para que os Suplicantes vivam oprimidos, e os seus vizinhos os não ajudem a suportar o peso do serviço público».
Olhando o documento, alguém escreveu à margem: «sem resposta». Os trabalhos nas Linhas prosseguiram até Maio de 1812, quando foi dada como concluída a construção dos redutos.






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