FAMILIAR DO SANTO OFÍCIO
UM PROCESSO DE HABILITAÇÃO
REQUERIDO POR UM ALENQUERENSE EM FINAIS DO SÉCULO XVII
O Tribunal do Santo Ofício, ou da Inquisição, tinha como missão zelar pela pureza da fé castigando e purificando os herejes. Esta instituição religiosa, salvadora de almas, começou a funcionar em França no século XII, chegou a Castela e Aragão em 1478, e a Portugal em 1536, reinado de D. Manuel I.
O seu aparecimento em Portugal esteve intimamente ligado à questão judaica na Península Ibérica, agudizada com a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, o que levou a que muitos aceitassem converterem-se ao cristianismo. Mesmo assim, foram terríveis as perseguições que os judeus conversos então sofreram no reino vizinho, ocasionando que um número substancial tivesse procurado refúgio no nosso País.
Com isso aumentou, e muito, a população judaica em Portugal, onde o rei «Venturoso» teve uma actuação dúplice. Se, por lado, pressionado pela nova realidade demográfica (e social) e pelos monarcas espanhóis, decretou a sua expulsão do reino, por outro, já que os judeus se haviam revelado importantes no financiamento da empresa ultramarina, procurou retê-los através da sua conversão obrigatória (1497).
O ódio dedicado aos judeus, com isso, deslocou-se para os cristãos novos, sendo eles as vítimas do maior número de processos que o Santo Tribunal movimentou, mas não só, porque muitos outros, sendo cristãos velhos, também passaram pelas masmorras da Inquisição.
OS FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO
Aumentando e muito os processos no Santo Tribunal, viu-se este na contingência de criar um corpo auxiliar de características policiais: os Familiares do Santo Ofício. Muitas eram as tarefas que estavam cometidas a estes agentes que se multiplicaram de forma a constituírem uma ampla teia que abarcava o todo nacional.
Aconteceu isso a partir de 1613, já que data do Regimento com essa data a primeira referência que lhes é feita, embora estudos efectuados revelem que os esforços para a construção dessa rede de Familiares no todo nacional, «já com privilégios e prestígio social», terão tido início a partir de 1562.
A estes Familiares estavam, pois, confiadas missões como proceder à prisão de suspeitos de heresia, sequestrar os seus bens que, geralmente, eram confiscados, efectuar vários tipos de diligências, como denunciar os que infringiam as regras da Santa Fé. Outrossim, vestidos com pompa dignitária, acompanhavam os sentenciados nos autos de fé, ou mesmo, sendo médicos, acompanhavam os actos de tortura avaliando a resistência à mesma dos presos nos tenebrosos cárceres onde eram supliciados.
Não era qualquer um que podia integrar esta família, já que a bitola a ultrapassar era alta, sendo exigida ao candidato «limpeza de sangue» na família (nada de mulatice ou sangue judaico, por exemplo), «bons costumes» (o mesmo que ter uma alta conduta moral), e possuir «fortes cabedais» (possuir meios de fortuna para que não se deixasse corromper no exercício das suas funções).
Aquele que achasse que reunia estas condições, em carta ao Santo Ofício, apresentava-se como candidato a Familiar, abrindo-se com ela um longo e moroso processo de investigação, por isso mesmo caro e as expensas do candidato, que, assim, tinha, desde logo que fazer valer os tais «fortes cabedais» ou meios de fortuna.
Mas nada garantia que tudo acabasse de acordo com a vontade do requerente, pois muitos foram os processos que não tiveram desfecho favorável; umas vezes por, sobre um antepassado, haver suspeita de «mulato» ou de «cristão novo», de ter «filhos ilegítimos» ou de viver ou ter vivido em «concubinato com uma negra», de ter tido «filho com uma escrava» ou «não possuir cabedais». Houve um que o não conseguiu porque «não vivia limpa e abastadamente»...
Todavia, quando o desfecho era favorável, então sim, o novo Familiar subia uns degraus na escada social impante de prestígio, passando a trazer ao peito, sobre os seus veludos, a medalha que o identificava como Familiar do Santo Ofício.
O PROCESSO DE UM NATURAL DE ALDEIA GALEGA DA MERCEANA
Em finais dos anos 80 do séc. XVII, passou pela cabeça de António da Cunha Thoar, nascido em Aldeia Galega da Merceana e então Capitão-mor da Comarca de Torres Vedras, com residência na Ribaldeira, fazer-se Familiar do Santo Ofício. Era este filho de Luís da Cunha de Thoar e de Inês de Faria de Lemos, ambos naturais da vila de Aldeia Galega da Merceana, já falecidos em 1688, e neto (paterno) de Luís da Cunha de Thoar e de Maria Álvares, também de Aldeia Galega e neto (materno) de António Gomes Monteiro, natural do termo da Merceana (freguesia do Meyo (?) ) e de Antónia de Lemos, de Torres Vedras.
No processo presente, apurou-se que o requerente tinha um filho natural, por nome Manuel, havido de Guiomar do Couto, nascida e moradora em Dois Portos, freguesia de S. Pedro da Cadeira, termo de Torres Vedras, neto de João do Couto, natural de Alenquer, freguesia de N. Senhora da Assunção de Triana, e de Maria Jerónima, natural do dito lugar de Dois Portos, bisneto de Estêvão do Couto e de Brites Soares, de Alenquer, esta última, grande fatalidade, infamada de mácula de cristã nova, como se apurou.
Assim, no ano de 1688 (reinado de D. Pedro II) foi julgado o habilitando inteiramente limpo de sangue, mas a mácula que se descobriu em Brites Soares, bisavó do seu filho natural (extra-matrimónio), impediu que se lhe concedesse a almejada carta de Familiar do Santo Ofício.
Consultar um destes processos na Torre do Tombo é tarefa interessante que nos deixa perplexos perante o número de testemunhas inquiridas e apresentadas, para garantir que sangue judeu não infamasse os membros desta tenebrosa teia policial. Talvez por isso os seus membros gozassem de tanto prestígio (mal dos tempos) e uma missão que deveria envergonhar, fosse afinal tão desejada como elevador social.
BIBLIOGRAFIA:
- CRUZ, Roberta Cristina da Silva, "Familiares do Santo Ofício Português: Uma análise sobre os novos padrões de recrutamento no século XVII", Trabalho apresentado ao «II Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais - Salvador, Setembro de 2013;
- MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro, "História da Inquisição Portuguesa (1536-1821", Lisboa, Esfera dos Livros, 2013;
- REIS, António do Carmo, "O Liberalismo em Portugal e a Igreja Católica", Lisboa, Editorial Notícias, 1988;
- SARAIVA, António José, "A Inquisição Portuguesa", 3ª Edição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1964;
- TORRES, José Veiga, "Da Repressão Religiosa para a Promoção Social", in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 40. outubro de 1994.
No processo presente, apurou-se que o requerente tinha um filho natural, por nome Manuel, havido de Guiomar do Couto, nascida e moradora em Dois Portos, freguesia de S. Pedro da Cadeira, termo de Torres Vedras, neto de João do Couto, natural de Alenquer, freguesia de N. Senhora da Assunção de Triana, e de Maria Jerónima, natural do dito lugar de Dois Portos, bisneto de Estêvão do Couto e de Brites Soares, de Alenquer, esta última, grande fatalidade, infamada de mácula de cristã nova, como se apurou.
Assim, no ano de 1688 (reinado de D. Pedro II) foi julgado o habilitando inteiramente limpo de sangue, mas a mácula que se descobriu em Brites Soares, bisavó do seu filho natural (extra-matrimónio), impediu que se lhe concedesse a almejada carta de Familiar do Santo Ofício.
Consultar um destes processos na Torre do Tombo é tarefa interessante que nos deixa perplexos perante o número de testemunhas inquiridas e apresentadas, para garantir que sangue judeu não infamasse os membros desta tenebrosa teia policial. Talvez por isso os seus membros gozassem de tanto prestígio (mal dos tempos) e uma missão que deveria envergonhar, fosse afinal tão desejada como elevador social.
BIBLIOGRAFIA:
- CRUZ, Roberta Cristina da Silva, "Familiares do Santo Ofício Português: Uma análise sobre os novos padrões de recrutamento no século XVII", Trabalho apresentado ao «II Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais - Salvador, Setembro de 2013;
- MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro, "História da Inquisição Portuguesa (1536-1821", Lisboa, Esfera dos Livros, 2013;
- REIS, António do Carmo, "O Liberalismo em Portugal e a Igreja Católica", Lisboa, Editorial Notícias, 1988;
- SARAIVA, António José, "A Inquisição Portuguesa", 3ª Edição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1964;
- TORRES, José Veiga, "Da Repressão Religiosa para a Promoção Social", in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 40. outubro de 1994.