ENTRE A HISTÓRIA E A LENDA



(V) - A ‘SENHORA DA GRAÇA’ DO CONVENTO DA CARNOTA, A QUE SEUROU VENTOS E MARÉS

 

São cinco as imagens de Maria que o baixo concelho de Alenquer venerava no séc. XVIII: A “Senhora do Testinho” (figurinha impressa num pedaço de louça), na Quinta do Campo, a “Senhora do Bom Sucesso” na Carnota de Baixo, ou, como é citado, no «Santuário do Bom Jesus da Carnota» que no séc. XVII era dos Gomes Freire de Andrade, a “Senhora da Assumpção” ou do “Zambujeiro”, por haver aparecido num zambujeiro frente à igreja de Cadafais, a “Senhora da Encarnação do convento jerónimo do Mato, Ribafria, muito associada à vida e morte de Frei Lourenço que foi confessor de D. Leonor, rainha consorte do nosso rei D. João II e a “Senhora da Graça” do convento de Santa Catarina da Carnota.

De todas estas imagens nos dá conta Frei Agostinho de Santa Maria no seu Santuário Mariano, e a todas elas se associam lendas, feitos milagrosos, histórias singelas, vivências místicas, festas religiosas e profanas que marcaram o viver dos habitantes do nosso concelho em épocas recuadas e difíceis que pediam o amparo divino e a festividade onde o sagrado logo convivia com o divertimento profano. Sendo impossível aqui tratar de todas elas, hoje trazemos a esta página a “Senhora da Graça” da Carnota, a do convento que depois foi casa senhorial do Conde da Carnota e dos seus descendentes, os Henriques.





A data da fundação do Convento de Santa Catarina da Carnota, assim chamado porque aí já existia uma pequenina ermida onde em altar estava uma imagem desta santa e mártir que teria pertencido ao primitivo oratório de Santa Catarina de Alenquer, morada de Frei Zacarias e dos primeiros franciscanos, remonta ao início do séc. XV, quando o asturiano Frei Diogo de Árias e mais alguns companheiros da «estreita observância» vieram para Portugal que, nesse tempo de Cisma Ocidental, apoiava o detentor da cadeira romana de Pedro e não o antipapa de Avignon.

Aqui chegados, à corte de D. João I, receberam a missão de reformar o convento de Alenquer que os «conventuais», a outra corrente franciscana, traziam na maior anarquia. Alcançada essa missão e a graça real, partiram para a fundação de novas casas da ordem, tendo sido a primeira a do Convento de Santo António da Castanheira, e logo depois esta casa da Carnota, cuja cerca pertencia à Quinta da Carnota (hoje do Amaral) que era pertença das freiras do mosteiro de Odivelas, com quem negociaram a expensas reais, sendo por isso o rei D. João I o primeiro benfeitor desta casa.

Uma casa que cresceu em virtude e materialmente, pois que para além da igreja e das necessárias instalações conventuais foram edificadas algumas ermidas na mata circundante. Uma dessas ermidas era dedicada a Nossa Senhora da Graça e aí no interior ou no alpendre estava a sua imagem, uma imagem em pedra tão antiga, que diz Frei Agostinho não se saber se era contemporânea dos frades primitivos ou se já lá estava quando os fundadores do convento chegaram.

Mas a fama milagreira da Senhora da Graça começou cerca do ano de 1640, quando uns marítimos que seriam da zona de Abrantes, talvez de Punhete (Constância), atracaram ao cais de Povos, ao tempo um porto importante quando Vila Franca ainda era pouco mais do que uma aldeia de pescadores, e daí dirigiram-se à Castanheira, seguindo até ao afamado convento da Carnota. Não se sabe como o fizeram, mas tendo-se agradado da imagem e sentindo-a ao seu dispor no remanso da mata conventual, decidiram levá-la consigo.

Não deve ter sido viagem fácil, a que marcou o seu regresso a Povos… Lá chegados embarcaram a imagem e aguardaram que a maré estivesse ao jeito de largarem as velas, eles e outros barcos que por lá estavam e foram Tejo fora, só que o seu nem se mexeu. Caso deveras estranho, pois com a maré a seu favor e as velas enfunadas, a embarcação continuou imóvel, como se invisíveis amarras a grudassem às paredes de pedra do cais.



Deduziram os marujos taganos que se o seu barco não navegava só podia ser por prodígio da imagem roubada e logo trataram de a devolver ao pároco de Povos, o rev. António Cosme, a ele confessando o seu acto delituoso. Reza a história que avisado o Guardião do Convento da Carnota, logo este mandou dois religiosos a Povos para trazerem para a sua casa a Senhora da Graça.

Quando a imagem chegou ao convento, depois das Completas, era já sol-posto e toda a comunidade, recitando a Ladainha, encaminhou-se para a mata levando em procissão a Senhora da Graça de volta a sua casa.

Como era já tarde, na frondosa mata todos os passarinhos estavam recolhidos e é então que o Divino opera novo prodígio, o qual, nas palavras de Frei Agostinho, teve os seguintes contornos:

«Caso maravilhoso, assim como os religiosos saíram da igreja, cantando a sua Ladainha, foi vista uma grande multidão de passarinhos que, saindo das árvores aonde estavam recolhidos, formaram no ar um coro, em que mostravam ir cantando outra Ladainha, com grande melodia de vozes, louvando e festejando a Senhora; e o que causou maior admiração aos religiosos, foi verem os corvos que viviam e criavam por aquela mata, juntos em outra turma, fazer também outro coro grasnando, ao seu modo, e festejando a sua Senhora».

Claro que muito admirados com o «prodigioso sucesso», na dúvida, os religiosos organizaram no dia seguinte uma nova procissão, «à mesma hora», com a imagem em ombros, mas a passarada manteve-se queda e muda, o que mais convenceu os frades que fora milagroso o festivo acontecimento do dia anterior.

Com isto a imagem de pedra da Senhora da Graça ficou recolhida na sua capelinha, mas agora fizeram-lhe porta que só abria à chave. Divulgados os acontecimentos, a devoção popular cresceu e à Carnota começaram a acorrer Círios oriundos dos mais variados lugares, dos quais o da corporação dos Bacalhoeiros, de Lisboa, era o mais rico e numeroso, pelo que terá sido a suas expensas que se começou a construção de um novo templo para a milagrosa imagem, o que terá acontecido no ano de 1727, de acordo com uma inscrição existente no edifício, ficando o mesmo concluído em 1735.

Relacionada com a obra desta igreja conta-se outra interessante lenda, ou milagre, como quiserem. No dia do lançamento da primeira pedra do novo templo decidiram os frades solenizar o acto, levando em procissão a santa imagem ao local. Todavia estavam muito pesarosos pois para animar o acto faltava-lhes um clarim, ou seu equivalente ao tempo, que atroasse os ares com a sua música, mas…  «de repente aparece um preto, ricamente vestido, coloca-se à testa da procissão, empunhando formoso clarim, e toca com perícia até a procissão se recolher, quando desapareceu tão misteriosamente como aparecera».

Já referimos que muitos foram os Círios que em romaria iam à Carnota festejar a Senhora da Graça, havendo notícia de dois do concelho de Alenquer, o de Refugidos e o de Pancas que terá sido o mais persistente, assinalando-se a sua última visita em 1905. O dos Bacalhoeiros, de Lisboa, terminou quando por decreto o convento encerrou, todavia antes disso a lenda regista um outro facto sobrenatural: Numa das visitas desse Círio, uma fagulha de foguete incendiou a mata, mas saindo os frades com a imagem prodigiosa e colocando-a frente ao fogo, logo este se apagou.

Esta imagem da Senhora da Graça, a verdadeira, a de pedra, teve um fim inglório aquando das invasões francesas, pois tendo os invasores napoleónicos escolhido as instalações conventuais para se aboletarem, um grupo de cavaleiros decidiu fazer cavalariça na igreja onde se encontrava a imagem. Não querendo os cavalos lá entrar, ou disso impedidos por mão divina, logo os ímpios atribuíram o facto à presença da imagem, pelo que a despedaçaram.

Terminando, tortuosos caminhos levou a preciosa quinta depois de muito estimada e conservada pelo Conde da Carnota e pelos seus descendentes. Por fim, negócios imobiliários mal sucedidos colocaram-na nas mãos de um banco, uma mão pouco protectora, pois notícias davam como «a saque» todo o precioso património ainda não liquidado. Notícias ainda mais recentes, dizem que aí vai nascer um hotel de charme

 

Bibliografia:

 

- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa, 1656;

- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer e seu ConcelhoO Ex-Convento da Carnota, 3.ª Edição Lisboa, Tip. José Assis & A. Coelho Dias, 1914;

- MARIA, Frei Agostinho de Santa, Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;

- SANTOS, Cândido, Os Jerónimos em Portugal – Das origens aos fins do século XVII, Porto, Centro de História da Universidade do Porto, 1980.

 

 


(V) - A ‘SENHORA DO CAPÍTULO’ GOSTA DO HINO Ó GLORIOSA DOMINA


        De quantas imagens de Maria no correr dos séculos Alenquer venerou, talvez nenhuma se compare em beleza, história e devoção popular, à da Senhora do Capítulo. E foram muitas essas imagens. No “Santuário Mariano”, precioso monumento do nosso Património escrito, obra de Frei Agostinho de Santa Maria datada de 1707, encontramos tratadas 12 imagens marianas em todo o Concelho, das quais metade na vila de Alenquer, sendo que dessas, três tiveram ou têm morada no Convento de S. Francisco: Nossa Senhora da Escada «que por estar colocada no topo de uma escada, lhe deram este sobrenome», Nossa Senhora da Piedade «muito milagrosa, e antiga, formada em pedra», e esta nossa Senhora do Capítulo de quem hoje nos propomos falar.

Para isso necessário se torna que recuemos a 1224, é este o ano, a data, digamos, lendária por nos parecer pouco credível (mas é ela que os escritos conhecidos indicam), quando, então, ainda era donatária de Alenquer a princesa D. Sancha, irmã do nosso Rei D. Afonso II, a mesma que aos discípulos de S. Francisco enviados a este reino, Frei Gualter e Frei Zacarias, havia oferecido o seu paço, que, porventura, já o fora de governantes godos, para que aí fundasse um convento.

Desses primeiros tempos conventuais muito se conta de fantástico ou milagroso, desde o Cristo crucificado que falava a Frei Zacarias, aos anjos que no refeitório serviam os frades; desde o Diabo que foi desmascarado quando praticava o bem para confundir e semear alvoroço, aos pães milagrosos que em tempo de grande carência um anjo disfarçado de gentil-homem deixou na portaria do convento, os quais se multiplicaram ao ponto de os frades não só se servirem deles, como também acudirem aos pobres necessitados da vila, chegando mesmo um às mãos de D. Sancha. Assim Deus recompensava essa casa de tanta virtude.




Porém, aconteceu um dia, que um «noviço de inocente vida» e de pensar leve, direi eu, fez alguma que levou o Guardião a impor-lhe como penitência «que não se apartasse do altar da Senhora até que ela mesma lhe revelasse qual a oração que entre todos era mais do seu agrado». Mas que pesada penitência para tão leve culpa…. Por mais Fé que tivesse a animar-lhe a alma, o pobre noviço certamente deu conta de que tinha a vida muito complicada.

Diz a lenda, perdão, o milagre, que «o santo noviço perseverou de joelhos todo o dia e, sendo já noite, do profundo da alma, com grande devoção e lágrimas, proferiu estas palavras: - Ó Virgem Santíssima, Mãe de piedade, humildemente vos rogo que manifesteis a este indigno servo, o que o Guardião me manda, por cuja obediência daqui não me hei-de apartar sem lhe levar a resposta».

Condoeu-se a Senhora do pobre noviço e a sua voz fez-se ouvir para grande espanto do coitado: «Vai-te amantíssimo filho, e afirma que o hino que a Igreja me canta – Ó gloriosa Domina – é, sobre todas as orações, a mais aceite, para cuja prova este meu Infante Jesus, que até agora tenho no braço direito, o passo ao esquerdo, pelo que vai confiado, porque vendo o mundo tão extraordinária maravilha, todo ele te dará crédito».

E assim foi. Em alvoroço o noviço correu ao Guardião, o Guardião chamou os frades, e todos em grande rebuliço foram aos pés da Senhora comprovar o prodígio. Depois tocaram os sinos na noite alenquerense, e ao convento, em grande turba, acorreram os moradores da vila. A partir desse dia, todos os sábados, depois das Completas – a 7ª das horas canónicas que diariamente marcavam os momentos de oração, sendo esta a última do dia, a que antecipava o descanso nocturno – era tangido o Sino Grande e toda a Comunidade ia em procissão iluminada por círios, cantar à Senhora, na Casa do Capítulo, o Ó gloriosa Domina.

Com o passar do tempo este ofício semanal passou a contar com a presença de muito povo e porque a Senhora tinha trono na casa capitular, aquela em que no convento os frades se reúnem para decidirem dos seus problemas, ou, de forma mais abrangente, dos problemas da Ordem, passou a ser conhecida como a ‘Senhora do Capítulo’ cuja festa, segundo Frei Manoel da Esperança, na sua História Seráfica se celebrava no «domingo depois da Páscoa», embora tenhamos já lido que em tempos mais recentes  se celebrava no segundo domingo de Maio.

Diz ainda este autor que a imagem estava «fechada num sacrário [nicho ou oratório segundo outros autores], em cujas portas da banda de fora se vê pintado o milagre, e o noviço de joelhos fazendo a sua petição». Dezenas de anos mais tarde, Frei Agostinho de Santa Maria coloca-a num «tabernáculo de valente talha dourada, e estofada com fundos pardos, coberta com preciosas cortinas».




Face a isso, é nossa convicção que os dois quadros que retratam o prodígio e hoje estão na parede da sacristia de S. Francisco, sobre o arcaz, os mesmos que ao seu tempo Guilherme João Henriques situava na igreja de S. Pedro, não são mais do que as portas do citado oratório agora emolduradas.

A imagem, hoje, com toda a sua beleza, está, não no Capítulo, mas na igreja de S. Francisco, na parede frente à pia baptismal. Dela diz Frei Manoel Esperança, desfazendo equívocos que «é de madeira e não de pedra, e está sentada em trono» ao que Frei Agostinho acrescenta que «a obra não é muito delicada [certamente aos olhos da sua época], mas supriu Deus, como soberano Artífice, as suas faltas com os resplendores da graça. Para prova e lembrança do milagre, quando mudou o Menino ficou-lhe adelgaçado o braço direito, como se o tivessem cavado e o regaço despintado, como sinal de que ali estivera. Mas parte disto está escondido nos nossos dias, pela devoção indiscreta de quem tomando por indecências os defeitos milagrosos, mandou reformar o braço e estofar [de “stoffa”, tela, técnica complexa da arte estatuária que vai do enchimento em madeira à elaborada decoração e douramento] o regaço, contentando-se em deixar escrita nele, com letras de ouro, a verdade da mudança». Está, pois, explicado…

Na obra “O Concelho de Alenquer”, Guapo, Oliveira e Padre José Eduardo Martins, fazendo notar algumas das suas características «o ligeiro arqueado da figura, os dedos afuselados, a rigidez e a dureza das pregas do manto e o pontiagudo sapato que surge sob a orla do vestido» que dão contorno a esta «imagem de madeira (1,24 m) ricamente estofada e policromada», reconhecem-lhe um «sabor gótico» e arriscam que é provavelmente do séc. XV. Obviamente que esta datação conflitua com a outra data de 1224 avançada no Santuário Mariano, como sendo aquela em que tudo aconteceu. Por mim, confesso amante e devoto da imagem da Senhora do Capítulo, prefiro acreditar que houve confusão quanto à data, e que esta é a vera imagem…

As festas a esta Senhora ainda se realizavam em finais do século passado, com o Cónego Joaquim da Silva, orador de grandes méritos, no púlpito, enaltecendo a Senhora. Depois era o arraial e o profano com as bandas do “Chegadinho” e do “Cartaxinho” lutando por um lugar no coreto. Num passado mais recuado, ficou registado que o Arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro (1536-1625), que não foi só um alto dignitário religioso, mas também, ao tempo de Filipe I e Filipe II, Presidente da Junta Governativa do Reino de Portugal (1593-1598) e Vice-rei de Portugal (1615-1618), vinha inúmeras vezes a Alenquer para venerar a Senhora do Capítulo em S. Francisco.

Registou ainda a História que D. Leonor Pimentel de Toledo, Duquesa de Florença e consorte de Cosme I da Toscânia, filha de Pedro de Toledo, Vice-rei de Nápoles e de D. Maria Osório Pimentel, 2ª Marquesa de Villafranca, era também sua devota, uma devota que a cumulou de muitas esmolas, enquanto possuidora do «campo do Rouxinol, do Paul de Ota e de outras rendas na vila».

Resta-nos falarmos do hino Ó gloriosa Domina, já que daqui, destes acontecimentos, «parece que nasceu no nosso Santo António de Lisboa, a grande devoção que tinha com este Hino», tendo-o cantado «em suas maiores necessidades» ou apertos de vida, mesmo à hora da morte, como o lembra o mesmo Frei Agostinho de Santa Maria, sendo que ainda hoje, todas as sextas-feiras, junto ao seu túmulo, ele é cantado.

 Pois este hino é mais antigo do que o que possamos imaginar, tendo sido composto por Venanzio Fortunato (530-607), Bispo de Poitiers, e começa assim: “Senhora gloriosa, // bem mais que o sol brilhais // O Deus que vos criou // ao seio amamentais». No «YouTub» existem várias versões, inclusive em canto gregoriano, a que vos aconselho. É lindo, caso para se dizer que a ‘Senhora do Capítulo’ tinha bom gosto.

 

Bibliografia:

 

- CARDOSO, Lic. George, Agiologio Lusitano, Tomo III, Lisboa, 1666;

- CUNHA, D. Rodrigo da, História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;

- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa, 1656;

- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal, 1873;

- MARIA, Frei Agostinho de Santa, Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;

- MELO, António de Oliveira, GUAPO, António Rodrigues, MARTINS, José Eduardo, O Concelho de Alenquer, 1, Alenquer, 1984.

 

 

(IV) - IR A MECA, PEDIR À SANTA QUE A ALMA NÃO SE PERCA…


A Santa, como carinhosa e familiarmente a trata o povo do concelho de Alenquer, é Santa Quitéria, aquela que, segundo Frei Diogo do Rosário, no seu Flos Sanctorum, é invocada pelos castelhanos «contra as angústias do coração e mordedura de cães danados». Pelos castelhanos? Sim, mas não só, pois o seu principal local de culto situa-se na Aquitânia, na cidade francesa de Aire-sur-l’Adour, povoação classificada pela UNESCO como património mundial. Em França são ainda locais do mesmo culto, Bordéus, Tours, Marselha… Na vizinha Espanha, onde Santa Quitéria é venerada desde o séc.XII, por obra do bispo de Sigüenza, Bernardo de Agén (1121-52), Zaragosa, Tarragona, Palência, Toledo, Palma de Maiorca, Alcázar de San Juan, são só mais algumas cidades e locais onde esta mártir da antiga Lusitânia, guarda lugar nos altares e nos corações dos crentes.

Porém, pode-se andar por «Ceca e Meca» que não se encontrará outra como a da nossa terra, nem mesmo no Monte Pombeiro em Felgueiras, onde Santa Quitéria tem Santuário. Nem outra, nem igreja, nem romaria, como aquela que se faz (ou fazia…) à nossa Santa Quitéria de Meca, a «da terra da cereja // que está tão encarnadinha // lá dentro da sua igreja». E já que aqui falámos de «Ceca e Meca», antigo aforismo, refira-se que “Ceca” era a designação popular da mesquita de Córdova, capital muçulmana da Ibéria, pelo que, segundo alguns, dizer «andar por Ceca e Meca», será o mesmo que aludir às antigas peregrinações hispano-muçulmanas, entre os dois centros religiosos mais importantes do Islão, o do ocidente e o do oriente. Contudo, há quem discorde, dizendo que Ceca é o que já dissemos, mas Meca está lá só para rimar…

Todavia uma coisa é quase certa, quando juntamos Ceca (Seca ou Asseca) a Meca, mais os «olivais de Santarém», será da nossa Meca e das suas romarias que se trata, essas romarias tão prazenteiras e concorridas que levavam à beira das estradas muitas famílias munidas dos seus farnéis, para, simplesmente, ficarem todo o dia a «ver passar povo para Meca», outro dizer popular.

Segundo reza a lenda, foi no distante ano de 1218 que na Quinta de S. Brás, vizinha de Meca, apareceu no oco de um espinheiro uma pequenina imagem de Santa Quitéria. Rapidamente o povo afeiçoou-se a ela, pelo que viu com tristeza o prior de Santa Maria da Várzea, paróquia a que ao tempo pertencia Meca, levar essa santa para a sua igreja na vila de Alenquer.

Então operou-se um novo prodígio, muito mais significativo do que o do seu aparecimento, pois inexplicavelmente, no dia seguinte, a imagem desapareceu da Várzea para voltar a aparecer em Meca, no mesmo local onde fora encontrada.


         Era vontade do céu, não havia, pois, que teimar. Fez-se capelinha para a receber, casa modesta que ao longo dos tempos foi crescendo na medida em que aumentava a devoção popular à Santa. Assim, de melhoramento em melhoramento, era já de pedra, bem ornamentada e muito acolhedora, a igreja que recebia os romeiros e que o terramoto de 1755 deitou por terra.

Na ocasião, por obra de 30.000 cruzados, ergueu-se um barracão de madeira, no mesmo sítio onde hoje estão umas mesas de pedra, casa precária na qual os devotos de Santa Quitéria pudessem dar continuidade à sua fé, na presença da imagem. Disso mesmo nos deu conta Berardo Silva, prior da Asseiceira, protonotário apostólico e visitador das igrejas do termo de Lisboa: «Achei esta igreja paroquial de Santa Quitéria arruinada por causa do terramoto, por cuja necessidade se fez uma barraca e levantou Altar, aonde se colocou o sacrário com o Santíssimo Sacramento, que está com suficiente decência».

Conta-nos ainda este prior que encontrou «disposto o risco [projecto] para a nova igreja» recomendando que se lhe desse início com brevidade pois que «é obra que necessita de anos para se completar», o que deixava desde logo antever que seria templo com certa magnificência. Obtida pela Mesa da Confraria uma «provisão de autorização do Rei D. José I, as obras tiveram o seu início em 1758, sob o encargo da citada Mesa da Confraria, beneficiada e muito em esmolas» e já ao tempo «uma das mais ricas e poderosas em Portugal».

Mas, fosse por má administração ou por má gestão dos dinheiros que não rendiam nem faziam andar a obra, esta arrastou-se por mais de duas décadas, quando, em 1778, o empreendimento sacro obteve o patrocínio da rainha D. Maria I. Refere Mónica Queiroz, em tese de doutoramento em Belas Artes (2013), obra que neste capítulo da nova igreja seguimos mais de perto, que as mesmas prosseguiram, mas não pacificamente, já que houve situações de desordem graves no seio da Mesa da Confraria, as quais conduziram, inclusive, à expulsão do então juiz que presidia à dita Mesa.

Com mais ou menos demora a igreja fez-se. E fez-se, conforme é notado, à semelhança da Basílica da Estrela, com as suas duas torres com remate bolboso e fogaréus. Sobre quem teria sido o arquitecto, certezas não se têm, porque não foi encontrado documento com o seu nome, mas os especialistas apontam o dedo a Mateus Vicente de Oliveira, o «arquitecto da Rainha», como pessoalmente o ouvimos de António José Pereira, grande estudioso do barroco português, naquela que foi a sua primeira visita ao monumento.

Isto, também, porque vêem em Meca o modelo que Mateus Vicente delineou para a Estrela, salientando Mónica Queiroz que «o arco querenado e o óculo quadrilobado projectados para a fachada da Basílica da Estrela acabaram por ser realidade em Meca», fazendo ainda notar que «em Lisboa apenas se mantiveram as quatro pilastras adossadas à parede» presentes em Meca.

É ainda a mesma estudiosa que faz luz sobre uma «lenda» que todos já ouvimos contar porque as gentes de Meca a guardaram na sua memória colectiva, a de que o mestre-de-obras teria caído de uma das torres da igreja e não teria visto a obra concluída, porque morrera nesse acidente. Refere ela que «por informação dos descendentes de Mateus Pereira, o arquitecto terá de facto sofrido um acidente numa das suas visitas à igreja de Meca e terá recuperado da queda em casa de sua filha Ana Joaquina Mónica, já casada com o major Falcão Encerrabodes e a viver em Arruda dos Vinhos. (…) Da queda nunca recuperaria totalmente, sendo esta uma das causas da sua morte, ocorrida em Lisboa, em Março de 1785».


Já sem a presença de Mateus Vicente, em 1790 estavam concluídas «a frontaria e uma das torres da fachada, o tecto e a respectiva pintura, e os dois painéis laterais da autoria de Pedro Alexandrino», mas a igreja só ficaria concluída em 1799. Uns longos 41 anos foi, assim, o tempo que demorou a construção deste notável templo, joia do património concelhio, não só pela magnificência do edifício, mas também pelas obras de arte que encerra.

São estes painéis os alusivos à «Pregação de João Baptista» (do lado da Epístola, à direita) e «A Última Ceia» (do lado do Evangelho), este último assinado pelo pintor. Por recibo passado por Alexandrino, sabe-se que são suas esta tela e uma existente na sacristia que representa «Nossa Senhora da Conceição», havendo no tecto do cruzeiro uma representação dos «Quatro Evangelistas» que também lhe é atribuída. Todo ele ricamente ornamentado, o tecto exibe na nave da igreja pinturas em tela alusivas a cenas da vida da santa que saíram do pincel de José António Narciso (1731-1811), que do seu trabalho também passou recibo.

Deste último pintor, que em vários locais trabalhou ao lado de Pedro Alexandrino, será ainda o interessante tecto da sacristia de Meca, em «tromp d’oeil», tendo Narciso deixado um outro tecto análogo na sacristia da Igreja do Sacramento, em Lisboa, trabalho esse que, segundo Victor Reis, terá antecipado o de Meca, provavelmente a sua última obra.

Chegados a Meca, parafraseando Francisco Câncio, num primeiro golpe de vista a igreja prende-nos logo, «é bela em demasia para uma solidão daquelas». Mas é ali que mora a Santa «advogada da hidrofobia». Poucos saberão porque Santa Quitéria assim o é, terminemos então com a lenda que o explica: Conta-se que ao tempo em que os romanos ainda por cá andavam, Quitéria, jovem de 15 anos, foi dada em casamento por seu pai Lúcio Severo ao jovem aristocrata Germano.

Já casada espiritualmente com Cristo, a jovem recusou e fugiu para onde um anjo lhe havia indicado que seria o seu lugar do seu martírio. Enfurecido e despeitado, seu pai ordenou a Germano que a procurasse e lhe cortasse a cabeça. Germano só viria a encontrá-la porque um pastor a denunciou, e, tendo sido esse pastor mordido por cães raivosos que lhe fizeram muitas feridas, nesse miserável estado e antes da jovem sofrer o martírio, implorou-lhe que o perdoasse. Ela não só lhe perdoou como o mandou lavar as feridas numa fonte que ali perto miraculosamente brotara, fonte santa porque logo o pastor ficou curado. Assim Quitéria se tornou a advogada contra a raiva.

 

Bibliografia:

 

- BRANCO, Padre Carlos Alberto da Silva F., Basílica de Santa Quitéria de Meca – Fé, Culto e Património, Confraria da Santa Quitéria de Meca, 1993;

- CÂNCIO, Francisco, Notas de um Ribatejano, Lisboa, 1956;

  --- Ribatejo, Edição de Autor, Lisboa, 1935;

- CASIMIRO, Luís Alberto, “Quitéria, uma santa da Lusitânia nas terras de Entre-Douro-e-Minho”, in Cultura – Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 27, 2010;

- MARTINS, Padre José Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, Alenquer, Arruda Editora, 2008;

- MELO, António de Oliveira, GUAPO, António Rodrigues, MARTINS, José Eduardo, O Concelho de Alenquer, 1, Alenquer, 1984;

- QUEIROZ, Mónica Ribas Marques Ribeiro de, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) – Uma práxís original na arquitectura portuguesa setecentista, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2013, Tese de Doutoramento em belas Artes; 

- REIS, Víctor, “A Descoberta de um Tecto- Alegoria Celestial de José António Narciso(…)”, in Revista de História da Arte, n.º 11, 2014.


(III) - SENHORA DA AMEIXOEIRA, METIDA NUMA CHARNECA…


     Numa quadra metricamente bem medida, assim a evocava o povo deste cantinho do Ribatejo: Senhora da Ameixoeira // Metida numa charneca // S. João da Castanheira // Santa Quitéria de Meca. Antes de mais, interessa saber porque estava a Senhora da Ameixoeira metida numa charneca, situada a mais ou menos quatro quilómetros de Abrigada, por detrás do Monte Redondo, junto à antiga estrada real que ia de Lisboa às Caldas da Rainha, no local onde ainda hoje se vê a Ponte da Ermida, assim chamada precisamente pela sua proximidade à antiga ermida da Senhora da Ameijoeira (ou Ameixoeira).

Frei Agostinho de Santa Maria, no seu “Santuário Mariano”, citando fontes ainda mais antigas, remete-nos para as brumas da História dizendo-nos que nesse local afastado de tudo, já muito antes da entrada dos mouros no território, estavam por lá orando nesse fim do mundo, uns eremitas Agostinhos (seguidores da doutrina de Santo Agostinho de Hipona), e por lá se teriam mantido, com ou sem a presença de Santo Ancirado, um monge vindo da Alemanha que é tido como o fundador do Mosteiro de Penafirme, perto da foz do Alcabrichel, entre Torres Vedras e a Lourinhã, até que incomodados pelos infiéis daí teriam fugido para junto do mar, deixando enterrados num cofre objectos de grande veneração, para que não caíssem nas mãos dos seguidores de Maomé.

Aqui chegados, a narrativa dá um salto de séculos, tantos quantos aqueles que nos levam ao ano de 1217, em que reinando em Portugal D. Afonso II e sendo senhora de Alenquer sua irmã a princesa D. Sancha, veio ao reino Frei Soeiro Gomes, um discípulo de S. Domingos que em Outubro do ano anterior vira a sua Ordem de padres pregadores aprovada pelo Papa Honório III.

Estava então o reino sob interdito pelas desavenças entre o rei e o arcebispo de Braga, D. Estêvão Soares da Silva. No dizer de Frei Luís de Sousa, autor da monumental “História da Ordem de S. Domingos”, vivia Portugal num estado «semelhante ao dos mouros, seus vizinhos, em não ter missa nem ofício divino, nem som de sinos ou outra solenidade». Assim, enquanto se dirigia a Alenquer ao encontro de D. Sancha, «ia magoado de tanta igreja fechada, e tanto silêncio, e tristeza».

Em Alenquer, na presença da piedosa Princesa que haveria de ser santa, encontrou D. Soeiro Gomes refrigério para a sua alma e apoio para a sua missão, pelo que em breve estava fundando no alto da Serra de Montejunto, junto a uma venerável capelinha em honra de Nossa Senhora das Neves, a primeira das casas da Ordem Dominicana em Portugal. Contam os livros religiosos, ou a lenda, que em certas noites de luar, perscrutando o escuro que lhe escondia o horizonte, via ao longe umas luzes movendo-se, enquanto uma música celestial lhe chegava aos ouvidos.

As luzes apareciam na charneca, no local onde se situava uma «quinta que se chamava Ameijoeira por haver nela o ordinário pasto das bestas, que os Reis que [ou quando] moravam em Alenquer davam às suas, e era de um Nuno Gonçalves, fidalgo da Casa d’El-Rei», assim se escreve na “Santuário Mariano”.

- Ponte da Ermida na proximidade da desaparecida igreja

Entre o intrigado e o maravilhado, Frei Soeiro Gomes fez chegar esta nova ao próprio Rei que estava em Alcácer do Sal, assistindo ao cerco que o Bispo de Lisboa, D. Soeiro Viegas, e cavaleiros por si liderados, auxiliados por cruzados, haviam imposto à forte praça que uma vez conquistada por D. Afonso Henriques em 1158, em 1191 havia caído novamente para o campo adversário, quando da segunda investida dos almóadas capitaneados por Almançor.

Alcançado o sucesso em Alcácer, veio o Rei D. Afonso II com o seu séquito dar graças à Senhora das Neves de Montejunto, aquela que morando no alto da serra assim era cantada pelo povo: «Nossa Senhora das Neves // Tem o seu mantinho roto. // Foi S. João a brincar // Que o Santo é muito maroto.», e, estando a régia comitiva na presença de Frei Soeiro, logo as visões nocturnas do bom frade se impuseram pelo que daí partiram, na companhia do Bispo, para o local onde apareciam as tais luzes.

Escavando onde a intuição mandou procurar, logo encontraram um cofre e, retirado este, operou-se o primeiro prodígio: no local onde ele estava rebentou uma copiosa nascente de água. Aberto o cofre, maravilhados encontraram nele uma imagem da Virgem e uma pedra onde Ela havia deixado impressos os seus pés, tudo acompanhado de dois pergaminhos onde se explicava, em «latim bárbaro e corrupto», que a imagem havia sido escondida para se a «guardar das mãos dos bárbaros» e que «(…) esta pedra é a mesma que a Virgem santíssima se dignou estampar as suas sagradas plantas, vindo em corpo e alma visitar esta última parte do Mundo. A 10 das Kalendas de janeiro era de 755. Seja o senhor servido defendê-la das mãos dos mouros».

Diz-se que, «tomado de amor divino» o Rei Afonso II beijou as relíquias e mandou construir no local uma ermida onde, atraídos pela fama milagrosa da imagem, acorriam numerosos fiéis em constantes romagens, pois «eram muitos os prodígios e as maravilhas que ali se operavam por intercessão da Mãe de Deus, assim como a água da sua fonte, como a terra do lugar onde estivera enterrada» no cofre, como o refere Frei Agostinho de Santa Maria.

Cresceu a devoção e expandiu-se o culto. Damião de Góis também foi crente da Senhora da Ameixoeira, pois, como declarou ao Tribunal da Inquisição quando do seu processo, a ela ofereceu «uma vestimenta de seda e um cálice de prata». Mas a quem este culto terá despertado sincero interesse, foi ao primeiro dos reis Filipes, o segundo de Espanha, com o cognome de “O Prudente”, que, segundo a tradição, agradado da pedra que a Virgem pisara e marcara deixando incisas as suas sagradas plantas, a mandou recolher ao convento madrileno de S. Lourenço do Escorial, como «joia de grande preço».

Depois, entre a Ameixoeira e o Escorial, perdeu-se o rumo a esta pedra objecto de tanta devoção, entrando ela, forçosamente, no campo da lenda. Numa leitura actual, o arqueólogo Miguel Costa, dessa lenda infere uma referência a «uma gravura rupestre», lembrando que «este tipo de lendas surge normalmente associada a gravuras rupestres decorrentes de cultos pré-cristãos» pelo que «este local de culto deveria ser muito anterior à chegada do cristianismo».

Retomando o fio à História, a pequenina ermida terá sobrevivido até cerca do séc. XVIII, quando então já existia uma igreja nova e grande, de uma só nave, capela mor e três altares, onde no maior, em tribuna de talha dourada, se podia ver na charola envidraçada a miraculosa imagem da Senhora. Porém, não só, pois aí, em 1707, assinala o “Santuário Mariano” uma “piscina de saúde”, certamente um tanque onde se banhavam os peregrinos para beneficiarem das preciosas águas da nascente milagrosa, obtendo curas documentadas em inúmeros ex-votos, «quadros que se vêem pendurados nas suas paredes», assim como «casas de romagem» onde se acomodavam os romeiros.

- Imagem da Senhora da Ameixoeira, hoje na matriz de Abrigada

         O culto cresceu e à Senhora da Ameixoeira acorriam muitos peregrinos e círios (de quase todas as terras do Ribatejo) que festejavam a imagem, que nas “Respostas” de 1758, Pedro Silveira, pároco de S. Pedro, descreve com «de Glória, e com o Menino». Um desses círios, ao tempo da primeira invasão francesa, foi selvática e cobardemente atacado pela tropa francesa que o terá (ou não) confundido com patriotas portugueses sublevados.

Corria o ano de 1808 e estávamos no mês de Julho, quando os franceses invasores foram desalojados de Pombal e Leiria por estudantes de Coimbra que haviam pegado em armas. Junot logo despachou ao seu encontro o General Margeron com dois batalhões de infantes, um esquadrão de Cavalaria e seis peças de Artilharia. Chegados cerca de Alcoentre e não encontrando o inimigo investiram sobre o Círio da Ameixoeira. O resultado foi desastroso, «logo aos primeiros tiros caem por terra, banhados em sangue, o pregador e o tocador de gaita, depois são assassinados indistintamente velhos, mulheres e crianças». (Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno). Para maior vergonha, os pendões do Círio foram levados como troféus para o Quartel General de Junot, em Lisboa. 

A igreja terá sobrevivido ao grande terramoto. Guilherme J. C. Henriques escreveu na sua obra maior que «haverá 40 anos, parece que ainda se festejava nela», o que nos remete para a primeira metade do século XIX. Talvez tenha sido em meados desse século que, estando o templo ao abandono num lugar tão ermo, logo sujeito a assaltos, o capelão tenha deixado o local e o povo da paróquia de Atouguia das Cabras levado a imagem para a igreja de N. Sr.ª da Graça, Abrigada, onde hoje se encontra. Mas, pertencendo ao tempo a Igreja da Senhora da Ameixoeira à colegiada de S. Pedro, Alenquer, essa acção não terá sido nada pacífica, pelo que mais de uma vez a imagem foi subtraída ora a uma ora a outra igreja pelo povo dessas freguesias, que dela se achava credor espiritual. Dos muitos Círios à Senhora da Ameixoeira, o de Curvel foi o mais persistente, chegando aos nossos tempos. 


Bibliografia:

 - CÂNCIO, Francisco, Notas de um Ribatejano, Lisboa, 1956;

  --- Ribatejo, Edição de Autor, Lisboa, 1935;

- COSTA, Miguel Cipriano Esteves, Redes Viárias de Alenquer e suas Dinâmicas, Coimbra, FLUC, 2010;

- CUNHA, D. Rodrigo da, História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;

- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal, 1873;

   --- Inéditos Goesianos, Vol. II, Fac-simile da Edição de 1898, Arruda Editora, 2002;

- MARTINS, Padre José Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, Alenquer, Arruda Editora, 2008;

- MARIA, Frei Agostinho de Santa, Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;

- MELO, António de Oliveira, e outros, O Concelho de Alenquer, 3, Alenquer, 1986;

- SILVA, Inácio José Alexandre da, Abrigada – Nossa Senhora da Ameixoeira, Abrigada, 2013;

- SOUSA, Frei Luís de, História de S. Domingos, Vol. I. Lisboa, 1977.

                                                                      

                                              

(II) POR SANTIAGO, E COM SANTIAGO, ALENQUER FEZ-SE PORTUGUESA



      Por demais conhecida é a lenda, nas suas várias versões, do Alão que entregou as chaves do castelo a D. Afonso Henriques, na noite de S. João do ano de 1148. Cumprindo um antigo ritual, os mouros, senhores da fortaleza inexpugnável, desceram nessa noite ao rio para se banharem nas suas águas serenas, ou melhor, nessa madrugada do solstício de Verão no hemisfério norte, fazendo-o em adoração ao Sol nascente, presságio de boas colheitas, deixando de guarda o que julgavam ser o seu fiel amigo.

     O desvio comportamental do Alão encontrou bom acolhimento na heráldica da vila que primeiro o colocou acorrentado a uma árvore, para depois o deitar à entrada de uma torre, local e posição onde ainda hoje se encontra, pois caprichoso como é, quando o quiseram colocar de pé, em 1934, levou a sua por diante e continuou deitado, como o explica, em documento de 1935, o eminente genealogista Affonso de Dornellas:

«(…) a pedido da Câmara Municipal de Alemquer, foi deliberado que o cão que figura nas Armas Municipais fosse andante em vez de deitado, conforme se tinha proposto no parecer inicial de 20 de Novembro de 1934.

     Reconsiderou a Câmara Municipal em que, de facto, o cão deve estar deitado, não lhe aceitando a Direcção Geral de Administração Política e Civil do Ministério do Interior essa alteração sem que a Comissão de Heráldica desse o seu parecer nesse sentido». E como a Comissão renovou a sua proposta inicial, lá ficou «um cão negro deitado tendo a mão direita sobre a esquerda».

        Já no que respeita à toponímia da vila, essa do «Alão Quer» que teria dado «Alemquer» parece não ter levado a melhor quanto à etimologia da palavra, pois os estudiosos apontam para outros étimos. Na sua monografia “A Vila de Alenquer”, de 1941, Luso Soares trata muito bem este capítulo, mostrando clara simpatia pelo étimo, do Sármata, “Alan-Kerk” ou “Castelo dos alanos” (ou “Alano-Kerk”, igreja ou templo dos alanos). O mesmo autor lembra ainda o árabe “Al-ain-Keir” ou “Fonte abençoada” que nos remete para a antiga Alenquer, a Alenquer das perenes e fartas nascentes de água.

        Porém, hoje uma outra hipótese se levanta, a que aqui deixamos tal como o meu amigo Dr. Filipe Rogeiro a deixou no site do Município: «A versão que nos parece mais provável é, no entanto, a que propõe Joaquim da Silveira, que considera o topónimo proveniente do latim, através do moçárabe. Ao latim iuncarium, ou seja juncal, se aglutinou o artigo árabe (al), resultando al-iunquerio, que, perdendo as vogais finais, segundo tendência dos moçárabes, terá dado Al-iunquer ou Al-unquer, sem que o i se consonantizasse, segundo tendência também moçárabe».

       Lembrada a lenda do Alão e as suas repercussões em temas que a trouxeram até aos nossos dias, voltemos à História. Em 1147 caiu Santarém, conquista cristã que teve enormes repercussões no projecto de reconquista idealizado por Afonso Henriques, projecto esse que não iria muito mais longe do que a linha do Tejo. Refira-se que esta não era a primeira vez que Santarém passava para as mãos dos cristãos, pois já aí estivera, sob sua administração, durante um século, entre 1094 e 1111.

      Em 1095, foi Afonso VI de Leão e Castela que lhe deu foral e, por muito tempo, a paz reinou nos férteis campos escalabitanos até que uma forte investida almorávida a fez mudar novamente de campo. Mas, segundo se conta, estes novos donos não eram mais do que gente estranha, numa cidade e termo com forte presença moçárabe que teria constituído uma «quinta coluna» quando da investida de Afonso Henriques e, por isso mesmo, a tornara tão fácil de conquistar.

        Deixando de lado o andamento épico da 61ª estrofe do III Canto dos Lusíadas, «Já lhe obedece [a Afonso Henriques] toda a Estremadura, // Óbidos, Alenquer, por onde soa // o tom das frescas águas, entre as pedras, // que murmurando lava, e Torres Vedras», a queda de Santarém não só abriu o caminho para Lisboa, como fez desabar a linha defensiva do Tejo.

       Por isso, em 1148, toda a Estremadura «caiu de madura». Dizem os modernos especialistas na nossa História Militar, e por muito que isso custe ao romantismo da reconquista que nos foi inoculado [falo da minha geração] por décadas de nacionalismo, não terá havido, por aqui, por este território estremenho, grandes epopeias, já que as muralhas estavam desprovidas de defensores, em debandada desde a queda de Lisboa.

      Mas, contraditoriamente, reza a lenda, e bem bonita que ela é, que tão forte foi a refrega dos cristãos pela conquista de Alenquer, nesse distante dia de 1148, que, no ardor da batalha, juravam ter visto, lá no portão onde a peleja era mais rija, o apóstolo Santiago, em pessoa, lutando a seu lado.




       Mais comedido no relato deste prodígio, foi o Prior de Santiago, Paulo Carneiro da Veiga, que nas “Respostas” ou “Memórias Paroquiais de 1758”, nos deixou a seguinte versão: «Rendida Lisboa, determinou no ano seguinte de 1148 o Santo Rei Dom Afonso Primeiro conquistar Alenquer, e depois de dois meses de duro cerco a tomou (…). E segundo uma memória antiga a entrou por combate de assalto pela porta que hoje se chama Postigo de Santiago; e por entender a piedade do Rei Conquistador que o Santo Apóstolo o socorrera naquela acção lhe mandara edificar junto da mesma porta, e da parte de fora da muralha uma paroquial e matriz , de que damos aqui esta especial notícia».

     A igreja pequenina mandada edificar por D. Afonso Henriques em agradecimento pela ajuda que recebeu na tomada da vila aos mouros, fez-se maior em 1661. Estando então a primitiva arruinada, D. Afonso VI levantou uma igreja nova no mesmo local da primeira, tendo o novo templo sido sagrado no dia 11 de Setembro de 1663.

      Construída fora das muralhas, a meia encosta, perto de um postigo chamado também de Santiago que a ligava à Judiaria, tinha a seus pés, num plano à beira rio, o pequenino templo e Recolhimento de Nossa Senhora da Redonda. 

      Poucos registos ficaram da igreja de Santiago, a qual seria pequena, de uma só nave e um só altar ornamentado por um retábulo com as imagens de S. Tiago, S. Bento e S. Bernardo, não tendo sacrário por se encontrar em lugar ermo.




       Não se sabe bem quando esta igreja entrou em ruína definitiva. Não terá sido com o devastador terramoto de 1755, pois nas “Respostas” ao régio inquérito, o seu prior não o refere. Pensa-se, isso sim que terá sido o desaparecimento da freguesia de S. Tiago, uma das cinco que a vila teve, que levou ao abandono e ruína desta igreja. Quando do Censo 1801-2 ainda a freguesia existia, mas desapareceria em razão da Lei de 12 de Junho de 1837, que reduziu as freguesias da vila a quatro: Santo Estêvão, Santa Maria da Várzea, S. Pedro e Triana (no concelho, a estas juntavam-se as de Atouguia, Cabanas de Torres, Cadafais, Carnota, Espiçandeira, Olhalvo, Ota, Palhacana, Paul de Ota, Santa Quitéria de Meca e Vila Nova da Rainha, hoje no concelho de Azambuja).

        Diz Guilherme J. C. Henriques, em 1873, data em que publicou “Alenquer e seu Concelho” que «há poucos anos acabou-se de a desmoronar para aproveitar o material na construção de uma ponte que liga à estrada da Merceana», dando-se assim o habitual aproveitamento ou reciclagem das velhas pedras… 

    Actualmente, quem a procurar tão só encontrará algumas outras pedras cobertas de vegetação, mas a minha geração ainda se lembra bem da sua torre sineira esguia, que por muitos anos enfrentou as alturas à beira do precipício. Pena foi que esta torre não tivesse sido consolidada e preservada como monumento, assinalando aos vindouros que, por ali, Alenquer foi conquistada aos sarracenos pelas hostes de D. Afonso Henriques, quem sabe, tendo à frente, incitando-os, o próprio “Santiago Mata-Mouros”. 



Bibliografia:

- AMARAL, Diogo Freitas do, D. Afonso Henriques, Biografia, Braga, Círculo dos Leitores, 2000;

- BARBOSA, Pedro Gomes, Reconquista Cristã, Lisboa, Ésquilo, 2008;

- FERRO, João Pedro, Alenquer Medieval (Séculos XII-XV), Cascais, Patrimonia Historica, 1996;

- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal, 1873;

- MARTINS, Padre José Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, Alenquer, Arruda Editora, 2008;

- MATTOSO, José, D. Afonso Henriques, Rio de Mouro, Círculo dos Leitores, 2006;

- SOARES, Luso, A Vila de Alenquer, Lisboa, Tip. Couto Martins, 1941.

 


(I) HÁ 800 ANOS OS "SANTOS MÁRTIRES" PASSARAM POR ALENQUER A CAMINHO DE MARROCOS


       Contam os livros antigos que foi exactamente há oitocentos anos, no dia 16 de Janeiro de 1220, pelas onze horas da manhã, que estando a Infanta D. Sancha, senhora de Alenquer, em oração numa câmara do seu paço, futuro convento de S. Francisco desta vila, lhe apareceram em glória, dando-lhe conta do seu martírio, os cinco frades franciscanos que ainda há bem pouco tempo acolhera nos seus domínios e deles se despedira nessa mesma câmara.

Frei Manoel da Esperança na sua icónica obra em cinco tomos, intitulada “Historia Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco” (Tomo I, 1656), descreve-nos o prodígio dizendo que «(…) eles lhe apareceram mais resplandecentes que a mesma luz do Sol, com as insígnias do martírio nas mãos, que não seriam espadas banhadas em sangue fresco, como alguns os pintaram, pelo horror que poderiam causar: senão cruzes cercadas de resplendores, em cuja virtude, comunicada da morte do Redentor, alcançaram a vitória.».

Revela ainda o cronista: «Saudaram-na cortesmente e disseram: Deus vos salve ilustríssima Princesa. Sabei, senhora, que as vossas caridades têm chegado ao céu e que, com elas, fostes parte para nós merecermos esta glória. Agora acabamos de vencer a mesma morte e imos viver eternamente na companhia de Deus. E porque vós nos recebestes aqui, nesta vossa casa, e dela nos iniciastes a esta batalha santa, o mesmo Senhor nos manda que vos demos estas novas. Dadas elas, desapareceram logo, deixando-a confortada de tal modo em o serviço de Deus, que se dantes tratava da santidade, deste tempo em diante se exercitou mais nela».

- Fragmento do painel de azulejos que cobre a portaria do Convento de S. Francisco de Alenquer
Os Santos Mártires aparecem a Santa Sancha na hora do seu suplício em Marrocos 

Adianta o texto que «por sua via se soube do mesmo tempo este caso no convento [então, ainda em Santa Catarina], o qual por ser mais interessado no bom sucesso dos Mártires, que dele tinham saído para a terra dos mouros, fez com alegria maiores demonstrações». Impressionada com o prodígio, em breve a santa Princesa fez oferta do seu paço aos franciscanos de Santa Catarina (1222) «ficando sempre em pé a dita câmara que conserva ainda a forma antiga. E é advertência de muitos, que recende maravilhosamente, e que sendo passados mais de quatrocentos anos, tem o forro tão novo, como se fora obrado hoje» (“Agiologio Lusitano”, Tomo III, do licenc. George Cardoso, 1666). Esta câmara onde se obrou o milagre, é hoje conhecida como capela de Santa Sancha. Passados outros quatro séculos, ainda lá está para acolher o visitante, e dela contaram ao longo dos anos outros autores e é voz popular que, por obra do divino, sempre se manteve prodigiosamente limpa, nela não entrando aranhas ou outros insectos, recendendo a um odor celestial.

Mas, deixemos o miraculoso e entremos na História. Corria o ano de 1219, de um tempo que era ainda de cruzadas à Terra Santa (1096-1270), quando entre Maio e Junho, após o capítulo geral da Ordem acontecido pelo Pentecostes, São Francisco decidiu enviar para o norte de África seis frades da sua Ordem, mais concretamente para Marrocos «cabeça do império africano, onde estava el-rei Miramolim, para trabalharem de o converter à fé de Cristo, porque convertido ele seria causa de todo o seu reino e vassalos se converterem a seu exemplo» (“Tratado da vida e martírio dos cinco Mártires de Marrocos”, Coimbra, 1568, de autor anónimo).

Foram eles, os eleitos, os italianos Frei Vital, sacerdote, que liderou o grupo até Aragão onde adoeceu, Frei Berardo de Carbio, presbítero e orador de grande mérito, que a partir de Aragão se tornou o leader, Frei Otto, sacerdote, Frei Pedro de Santo Geminiano, diácono e os irmãos professos Frei Adjuto e Frei Acúrsio. De todos, só os dois primeiros conheciam a língua árabe. Vestidos de «grosso burel sobre as suas carnes, cingidos com cordas, descalços e postos em tão áspero trajo, despojados de alforge ou bordão, foram sempre pregando a fé cristã e evangélica por todas as praças e lugares públicos e particulares onde viam gente junta» (Tratado atrás citado).

Chegados a Coimbra foram recebidos pela rainha D. Urraca, mulher de D. Afonso II, a quem revelaram a sua missão. É bem possível que nessa cidade à beira do Mondego, onde pobremente se acolheram ao hospício do Mosteiro de Santa Cruz (dos padres crúzios), tenham conhecido um certo cónego regrante de Santo Agostinho, de nome Fernando de Bulhões (Santo António de Pádua ou de Lisboa), mais tarde uma das glórias da sua ordem, a ela atraído, quiçá, pelo seu exemplo. Mas o seu destino, para já, era Alenquer, onde se apresentaram com carta da rainha D. Urraca a sua cunhada a princesa D. Sancha.

Relata Frei Manoel Esperança que D. Urraca «encomendava [a D. Sancha], que, pois que estava tão vizinha de Lisboa, lhes mandasse aprestar embarcação». Todavia, «primeiro que subissem ao paço, vieram ao convento [como já referimos, ainda em Santa Catarina] para dar obediência ao santo guardião Frei Zacarias [um dos fundadores da Ordem em Portugal] e para se consolarem com a vista de seus caríssimos irmãos, do trabalho e do caminho». Quando a Infanta soube da sua chegada, chamou-os e «vendo tantos sinais expressos de santidade, acompanhados do desejo de martírio, notavelmente lhes ficou afeiçoada; e, enquanto os teve em Alenquer sempre se aproveitou da sua conversação (…)».

Em Alenquer cresceram as barbas aos frades e chegado o tempo, vestidos de roupas seculares (ou de romeiros), uma exigência do mestre da embarcação para não desagradar aos mouros com quem comerciava, «armados já cavaleiros para a sua vitoriosa batalha (…) despediram-se alegres, assim dela [da Infanta], como também do convento»,

Depois foi o martírio, primeiro em Sevilha, ainda sob o domínio do Islão e de seguida em Marrocos, às mãos de Miramolim, já que para aí foram deportados pelo emir de Sevilha. Chegaram a Marraquexe na companhia de D. Pedro Fernandez de Crasto, e nessa cidade tiveram o apoio do infante D. Pedro, irmão do rei D. Afonso II e de D. Sancha, presente na corte do sultão sarraceno como “nobre mercenário”, situação curiosa para um infante e que, segundo alguns, fora ditada por razões económicas e por desavenças com seu irmão e rei, afinal tão comuns aos filhos segundos da nobreza, e, pelos vistos, mesmo aos da mais alta nobreza.

Painel do políptico do Convento de S. Francisco de Évora
Suplício das cinco frades franciscanos em Marrocos

Seria este Infante quem, com imensas dificuldades e trabalhos, alcançaria recolher, tratar por emundação as ossadas [fervendo os despojos para separar a carne dos ossos, um processo comum à época], e acondicioná-las para uma longa viagem até Coimbra, onde chegaram em finais de 1220, vindas de Leão e conduzidas por Afonso Pires de Arganil.

Voltando à lenda, tinham os Santos Mártires profetizado à rainha D. Urraca, quando da sua passagem por Coimbra, em resposta a uma pergunta desta, que entre ela e o Rei seu marido o primeiro a morrer seria o que primeiro vislumbrasse as suas relíquias. Por coincidência ou não, o destino (ou o céu) jogou em desfavor da soberana, como se sabe. Ainda à chegada das relíquias a Coimbra, o sobrenatural fez-se sentir naquele que viria a ficar conhecido como o «milagre da burra». Vindo as relíquias em dois cofres sobre uma burra, dirigiu-se esta e estancou defronte da Igreja de Santa Cruz, não mais se movendo, até que lhe abriram as portas. Aí avançou igreja dentro para parar junto do altar-mor, como quem faz a entrega das sagradas arcas.

Em Alenquer, para além da capela de Santa Sancha, no Convento de S. Francisco, encontra-se ligada a este sucesso, a Igreja do que foi o Oratório de Santa Catarina, (não o original onde esteve Frei Zacarias, porque este é do séc. XVII), conventinho que, enquanto funcionou como tal, acolhia cinco frades franciscanos, do convento maior, em homenagem aos Cinco Mártires de Marrocos. Frei Fernando da Soledade, na sua “História Seráfica”, de 1719, assinala a existência aí de uma «multidão de preciosas relíquias (…) as quais para maior veneração se engastaram em meios corpos, e braços, de Santos a quem pertencem». A partir de Coimbra, dispersas por muitos locais religiosos, teria chegado a Alenquer uma dessas relíquias?

                                                                                                                

 Bibliografia:

- CARDOSO, Lic. George, Agiologio Lusitano, Tomo III, Lisboa 1666;

- CORNEJO, Damian, Chronica Serphica, Tomo II, Madrid, 1727;

- CUNHA, D. Rodrigo da, História Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;

- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa,1656;

- MARIA, Frei Agostinho de Santa, Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;

- MELO, António de Oliveira, e outros, O Concelho de Alenquer, 3, Alenquer, 1986;

- PACHECO, Milton Pedro Dias, “Os Proto-Mártires de Marrocos da Ordem de São Francisco” in Revista Lusófona de Ciência das Religiões, nº 15 de 2009, Coimbra, 2009;

- SOLEDADE, Fernando, Historia Seráfica Chronologica da Ordem de S. Francisco da Província de Portugal, Tomo III, Lisboa, 1705;

- Tratado da vida e martyrio dos Cinco Martires de Marrocos enviados per são Francisco, Livro I, Coimbra, 1568.

 


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