ENTRE A HISTÓRIA E A LENDA
(V) - A ‘SENHORA DA GRAÇA’ DO CONVENTO DA CARNOTA, A QUE SEUROU VENTOS E MARÉS
São cinco as imagens de Maria que o baixo
concelho de Alenquer venerava no séc. XVIII: A “Senhora do Testinho” (figurinha
impressa num pedaço de louça), na Quinta do Campo, a “Senhora do Bom Sucesso”
na Carnota de Baixo, ou, como é citado, no «Santuário do Bom Jesus da Carnota»
que no séc. XVII era dos Gomes Freire de Andrade, a “Senhora da Assumpção” ou
do “Zambujeiro”, por haver aparecido num zambujeiro frente à igreja de
Cadafais, a “Senhora da Encarnação do convento jerónimo do Mato, Ribafria,
muito associada à vida e morte de Frei Lourenço que foi confessor de D. Leonor,
rainha consorte do nosso rei D. João II e a “Senhora da Graça” do convento de
Santa Catarina da Carnota.
De
todas estas imagens nos dá conta Frei Agostinho de Santa Maria no seu Santuário
Mariano, e a todas elas se associam lendas, feitos milagrosos, histórias
singelas, vivências místicas, festas religiosas e profanas que marcaram o viver
dos habitantes do nosso concelho em épocas recuadas e difíceis que pediam o
amparo divino e a festividade onde o sagrado logo convivia com o divertimento
profano. Sendo impossível aqui tratar de todas elas, hoje trazemos a esta
página a “Senhora da Graça” da Carnota, a do convento que depois foi casa
senhorial do Conde da Carnota e dos seus descendentes, os Henriques.
A
data da fundação do Convento de Santa Catarina da Carnota, assim chamado porque
aí já existia uma pequenina ermida onde em altar estava uma imagem desta santa
e mártir que teria pertencido ao primitivo oratório de Santa Catarina de
Alenquer, morada de Frei Zacarias e dos primeiros franciscanos, remonta ao
início do séc. XV, quando o asturiano Frei Diogo de Árias e mais alguns
companheiros da «estreita observância» vieram para Portugal que, nesse tempo de
Cisma Ocidental, apoiava o detentor da cadeira romana de Pedro e não o antipapa
de Avignon.
Aqui
chegados, à corte de D. João I, receberam a missão de reformar o convento de
Alenquer que os «conventuais», a outra corrente franciscana, traziam na maior
anarquia. Alcançada essa missão e a graça real, partiram para a fundação de
novas casas da ordem, tendo sido a primeira a do Convento de Santo António da
Castanheira, e logo depois esta casa da Carnota, cuja cerca pertencia à Quinta
da Carnota (hoje do Amaral) que era pertença das freiras do mosteiro de
Odivelas, com quem negociaram a expensas reais, sendo por isso o rei D. João I
o primeiro benfeitor desta casa.
Uma
casa que cresceu em virtude e materialmente, pois que para além da igreja e das
necessárias instalações conventuais foram edificadas algumas ermidas na mata
circundante. Uma dessas ermidas era dedicada a Nossa Senhora da Graça e aí no
interior ou no alpendre estava a sua imagem, uma imagem em pedra tão antiga,
que diz Frei Agostinho não se saber se era contemporânea dos frades primitivos
ou se já lá estava quando os fundadores do convento chegaram.
Mas
a fama milagreira da Senhora da Graça começou cerca do ano de 1640, quando uns
marítimos que seriam da zona de Abrantes, talvez de Punhete (Constância),
atracaram ao cais de Povos, ao tempo um porto importante quando Vila Franca
ainda era pouco mais do que uma aldeia de pescadores, e daí dirigiram-se à
Castanheira, seguindo até ao afamado convento da Carnota. Não se sabe como o
fizeram, mas tendo-se agradado da imagem e sentindo-a ao seu dispor no remanso
da mata conventual, decidiram levá-la consigo.
Não
deve ter sido viagem fácil, a que marcou o seu regresso a Povos… Lá chegados
embarcaram a imagem e aguardaram que a maré estivesse ao jeito de largarem as
velas, eles e outros barcos que por lá estavam e foram Tejo fora, só que o seu
nem se mexeu. Caso deveras estranho, pois com a maré a seu favor e as velas
enfunadas, a embarcação continuou imóvel, como se invisíveis amarras a
grudassem às paredes de pedra do cais.
Deduziram
os marujos taganos que se o seu barco não navegava só podia ser por prodígio da
imagem roubada e logo trataram de a devolver ao pároco de Povos, o rev. António
Cosme, a ele confessando o seu acto delituoso. Reza a história que avisado o
Guardião do Convento da Carnota, logo este mandou dois religiosos a Povos para
trazerem para a sua casa a Senhora da Graça.
Quando
a imagem chegou ao convento, depois das Completas, era já sol-posto e toda a
comunidade, recitando a Ladainha, encaminhou-se para a mata levando em
procissão a Senhora da Graça de volta a sua casa.
Como
era já tarde, na frondosa mata todos os passarinhos estavam recolhidos e é
então que o Divino opera novo prodígio, o qual, nas palavras de Frei Agostinho,
teve os seguintes contornos:
«Caso
maravilhoso, assim como os religiosos saíram da igreja, cantando a sua
Ladainha, foi vista uma grande multidão de passarinhos que, saindo das árvores
aonde estavam recolhidos, formaram no ar um coro, em que mostravam ir cantando
outra Ladainha, com grande melodia de vozes, louvando e festejando a Senhora; e
o que causou maior admiração aos religiosos, foi verem os corvos que viviam e
criavam por aquela mata, juntos em outra turma, fazer também outro coro
grasnando, ao seu modo, e festejando a sua Senhora».
Claro
que muito admirados com o «prodigioso sucesso», na dúvida, os religiosos
organizaram no dia seguinte uma nova procissão, «à mesma hora», com a imagem em
ombros, mas a passarada manteve-se queda e muda, o que mais convenceu os frades
que fora milagroso o festivo acontecimento do dia anterior.
Com
isto a imagem de pedra da Senhora da Graça ficou recolhida na sua capelinha,
mas agora fizeram-lhe porta que só abria à chave. Divulgados os acontecimentos,
a devoção popular cresceu e à Carnota começaram a acorrer Círios oriundos dos
mais variados lugares, dos quais o da corporação dos Bacalhoeiros, de Lisboa,
era o mais rico e numeroso, pelo que terá sido a suas expensas que se começou a
construção de um novo templo para a milagrosa imagem, o que terá acontecido no
ano de 1727, de acordo com uma inscrição existente no edifício, ficando o mesmo
concluído em 1735.
Relacionada
com a obra desta igreja conta-se outra interessante lenda, ou milagre, como
quiserem. No dia do lançamento da primeira pedra do novo templo decidiram os
frades solenizar o acto, levando em procissão a santa imagem ao local. Todavia
estavam muito pesarosos pois para animar o acto faltava-lhes um clarim, ou seu
equivalente ao tempo, que atroasse os ares com a sua música, mas… «de repente aparece um preto, ricamente
vestido, coloca-se à testa da procissão, empunhando formoso clarim, e toca com
perícia até a procissão se recolher, quando desapareceu tão misteriosamente
como aparecera».
Já
referimos que muitos foram os Círios que em romaria iam à Carnota festejar a
Senhora da Graça, havendo notícia de dois do concelho de Alenquer, o de
Refugidos e o de Pancas que terá sido o mais persistente, assinalando-se a sua
última visita em 1905. O dos Bacalhoeiros, de Lisboa, terminou quando por
decreto o convento encerrou, todavia antes disso a lenda regista um outro facto
sobrenatural: Numa das visitas desse Círio, uma fagulha de foguete incendiou a
mata, mas saindo os frades com a imagem prodigiosa e colocando-a frente ao
fogo, logo este se apagou.
Esta
imagem da Senhora da Graça, a verdadeira, a de pedra, teve um fim inglório aquando
das invasões francesas, pois tendo os invasores napoleónicos escolhido as
instalações conventuais para se aboletarem, um grupo de cavaleiros decidiu
fazer cavalariça na igreja onde se encontrava a imagem. Não querendo os cavalos
lá entrar, ou disso impedidos por mão divina, logo os ímpios atribuíram o facto
à presença da imagem, pelo que a despedaçaram.
Terminando,
tortuosos caminhos levou a preciosa quinta depois de muito estimada e conservada
pelo Conde da Carnota e pelos seus descendentes. Por fim, negócios imobiliários
mal sucedidos colocaram-na nas mãos de um banco, uma mão pouco protectora, pois
notícias davam como «a saque» todo o precioso património ainda não liquidado.
Notícias ainda mais recentes, dizem que aí vai nascer um hotel de charme…
Bibliografia:
- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História Seráfica
da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa, 1656;
- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer
e seu Concelho – O Ex-Convento da Carnota, 3.ª Edição Lisboa, Tip.
José Assis & A. Coelho Dias, 1914;
- MARIA, Frei Agostinho de Santa,
Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;
- SANTOS, Cândido, Os Jerónimos em
Portugal – Das origens aos fins do século XVII, Porto, Centro de História da
Universidade do Porto, 1980.
(V) - A ‘SENHORA DO CAPÍTULO’ GOSTA DO HINO Ó GLORIOSA DOMINA
Para
isso necessário se torna que recuemos a 1224, é este o ano, a data, digamos,
lendária por nos parecer pouco credível (mas é ela que os escritos conhecidos
indicam), quando, então, ainda era donatária de Alenquer a princesa D. Sancha,
irmã do nosso Rei D. Afonso II, a mesma que aos discípulos de S. Francisco
enviados a este reino, Frei Gualter e Frei Zacarias, havia oferecido o seu
paço, que, porventura, já o fora de governantes godos, para que aí fundasse um
convento.
Desses
primeiros tempos conventuais muito se conta de fantástico ou milagroso, desde o
Cristo crucificado que falava a Frei Zacarias, aos anjos que no refeitório
serviam os frades; desde o Diabo que foi desmascarado quando praticava o bem
para confundir e semear alvoroço, aos pães milagrosos que em tempo de grande
carência um anjo disfarçado de gentil-homem deixou na portaria do convento, os
quais se multiplicaram ao ponto de os frades não só se servirem deles, como também
acudirem aos pobres necessitados da vila, chegando mesmo um às mãos de D.
Sancha. Assim Deus recompensava essa casa de tanta virtude.
Porém, aconteceu um dia, que um «noviço de inocente vida» e de pensar leve, direi eu, fez alguma que levou o Guardião a impor-lhe como penitência «que não se apartasse do altar da Senhora até que ela mesma lhe revelasse qual a oração que entre todos era mais do seu agrado». Mas que pesada penitência para tão leve culpa…. Por mais Fé que tivesse a animar-lhe a alma, o pobre noviço certamente deu conta de que tinha a vida muito complicada.
Diz
a lenda, perdão, o milagre, que «o santo noviço perseverou de joelhos todo o
dia e, sendo já noite, do profundo da alma, com grande devoção e lágrimas,
proferiu estas palavras: - Ó Virgem Santíssima, Mãe de piedade, humildemente
vos rogo que manifesteis a este indigno servo, o que o Guardião me manda, por
cuja obediência daqui não me hei-de apartar sem lhe levar a resposta».
Condoeu-se
a Senhora do pobre noviço e a sua voz fez-se ouvir para grande espanto do
coitado: «Vai-te amantíssimo filho, e afirma que o hino que a Igreja me canta –
Ó gloriosa Domina – é, sobre todas as orações, a mais aceite, para cuja
prova este meu Infante Jesus, que até agora tenho no braço direito, o passo ao
esquerdo, pelo que vai confiado, porque vendo o mundo tão extraordinária
maravilha, todo ele te dará crédito».
E
assim foi. Em alvoroço o noviço correu ao Guardião, o Guardião chamou os
frades, e todos em grande rebuliço foram aos pés da Senhora comprovar o
prodígio. Depois tocaram os sinos na noite alenquerense, e ao convento, em
grande turba, acorreram os moradores da vila. A partir desse dia, todos os
sábados, depois das Completas – a 7ª das horas canónicas que diariamente
marcavam os momentos de oração, sendo esta a última do dia, a que antecipava o
descanso nocturno – era tangido o Sino Grande e toda a Comunidade ia em procissão
iluminada por círios, cantar à Senhora, na Casa do Capítulo, o Ó gloriosa
Domina.
Com
o passar do tempo este ofício semanal passou a contar com a presença de muito
povo e porque a Senhora tinha trono na casa capitular, aquela em que no
convento os frades se reúnem para decidirem dos seus problemas, ou, de forma
mais abrangente, dos problemas da Ordem, passou a ser conhecida como a ‘Senhora
do Capítulo’ cuja festa, segundo Frei Manoel da Esperança, na sua História
Seráfica se celebrava no «domingo depois da Páscoa», embora tenhamos já
lido que em tempos mais recentes se celebrava
no segundo domingo de Maio.
Diz
ainda este autor que a imagem estava «fechada num sacrário [nicho ou oratório
segundo outros autores], em cujas portas da banda de fora se vê pintado o
milagre, e o noviço de joelhos fazendo a sua petição». Dezenas de anos mais
tarde, Frei Agostinho de Santa Maria coloca-a num «tabernáculo de valente talha
dourada, e estofada com fundos pardos, coberta com preciosas cortinas».
Face a isso, é nossa convicção que os dois quadros que retratam o prodígio e hoje estão na parede da sacristia de S. Francisco, sobre o arcaz, os mesmos que ao seu tempo Guilherme João Henriques situava na igreja de S. Pedro, não são mais do que as portas do citado oratório agora emolduradas.
A
imagem, hoje, com toda a sua beleza, está, não no Capítulo, mas na igreja de S.
Francisco, na parede frente à pia baptismal. Dela diz Frei Manoel Esperança,
desfazendo equívocos que «é de madeira e não de pedra, e está sentada em trono»
ao que Frei Agostinho acrescenta que «a obra não é muito delicada [certamente
aos olhos da sua época], mas supriu Deus, como soberano Artífice, as suas
faltas com os resplendores da graça. Para prova e lembrança do milagre, quando
mudou o Menino ficou-lhe adelgaçado o braço direito, como se o tivessem cavado
e o regaço despintado, como sinal de que ali estivera. Mas parte disto está
escondido nos nossos dias, pela devoção indiscreta de quem tomando por
indecências os defeitos milagrosos, mandou reformar o braço e estofar [de
“stoffa”, tela, técnica complexa da arte estatuária que vai do enchimento em
madeira à elaborada decoração e douramento] o regaço, contentando-se em deixar
escrita nele, com letras de ouro, a verdade da mudança». Está, pois, explicado…
Na
obra “O Concelho de Alenquer”, Guapo, Oliveira e Padre José Eduardo Martins, fazendo
notar algumas das suas características «o ligeiro arqueado da figura, os dedos
afuselados, a rigidez e a dureza das pregas do manto e o pontiagudo sapato que
surge sob a orla do vestido» que dão contorno a esta «imagem de madeira (1,24
m) ricamente estofada e policromada», reconhecem-lhe um «sabor gótico» e
arriscam que é provavelmente do séc. XV. Obviamente que esta datação conflitua
com a outra data de 1224 avançada no Santuário Mariano, como sendo
aquela em que tudo aconteceu. Por mim, confesso amante e devoto da imagem da
Senhora do Capítulo, prefiro acreditar que houve confusão quanto à data, e que
esta é a vera imagem…
As
festas a esta Senhora ainda se realizavam em finais do século passado, com o
Cónego Joaquim da Silva, orador de grandes méritos, no púlpito, enaltecendo a
Senhora. Depois era o arraial e o profano com as bandas do “Chegadinho” e do
“Cartaxinho” lutando por um lugar no coreto. Num passado mais recuado, ficou
registado que o Arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro (1536-1625), que não
foi só um alto dignitário religioso, mas também, ao tempo de Filipe I e Filipe
II, Presidente da Junta Governativa do Reino de Portugal (1593-1598) e Vice-rei
de Portugal (1615-1618), vinha inúmeras vezes a Alenquer para venerar a Senhora
do Capítulo em S. Francisco.
Registou
ainda a História que D. Leonor Pimentel de Toledo, Duquesa de Florença e
consorte de Cosme I da Toscânia, filha de Pedro de Toledo, Vice-rei de Nápoles
e de D. Maria Osório Pimentel, 2ª Marquesa de Villafranca, era também sua
devota, uma devota que a cumulou de muitas esmolas, enquanto possuidora do
«campo do Rouxinol, do Paul de Ota e de outras rendas na vila».
Resta-nos
falarmos do hino Ó gloriosa Domina, já que daqui, destes acontecimentos,
«parece que nasceu no nosso Santo António de Lisboa, a grande devoção que tinha
com este Hino», tendo-o cantado «em suas maiores necessidades» ou apertos de
vida, mesmo à hora da morte, como o lembra o mesmo Frei Agostinho de Santa
Maria, sendo que ainda hoje, todas as sextas-feiras, junto ao seu túmulo, ele é
cantado.
Pois este hino é mais antigo do que o que
possamos imaginar, tendo sido composto por Venanzio Fortunato (530-607), Bispo
de Poitiers, e começa assim: “Senhora gloriosa, // bem mais que o sol brilhais
// O Deus que vos criou // ao seio amamentais». No «YouTub» existem várias
versões, inclusive em canto gregoriano, a que vos aconselho. É lindo, caso para
se dizer que a ‘Senhora do Capítulo’ tinha bom gosto.
Bibliografia:
-
CARDOSO, Lic. George, Agiologio Lusitano, Tomo III, Lisboa, 1666;
- CUNHA, D. Rodrigo da, História
Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;
- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História
Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa,
1656;
- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer
e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal, 1873;
- MARIA, Frei Agostinho de Santa,
Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;
- MELO, António de Oliveira, GUAPO,
António Rodrigues, MARTINS, José Eduardo, O Concelho de Alenquer, 1,
Alenquer, 1984.
(IV) - IR A MECA, PEDIR À SANTA QUE A ALMA NÃO SE PERCA…
A Santa, como carinhosa e
familiarmente a trata o povo do concelho de Alenquer, é Santa Quitéria, aquela
que, segundo Frei Diogo do Rosário, no seu Flos Sanctorum, é invocada
pelos castelhanos «contra as angústias do coração e mordedura de cães danados».
Pelos castelhanos? Sim, mas não só, pois o seu principal local de culto
situa-se na Aquitânia, na cidade francesa de Aire-sur-l’Adour, povoação
classificada pela UNESCO como património mundial. Em França são ainda locais do
mesmo culto, Bordéus, Tours, Marselha… Na vizinha Espanha, onde Santa Quitéria
é venerada desde o séc.XII, por obra do bispo de Sigüenza, Bernardo de Agén
(1121-52), Zaragosa, Tarragona, Palência, Toledo, Palma de Maiorca, Alcázar de
San Juan, são só mais algumas cidades e locais onde esta mártir da antiga Lusitânia,
guarda lugar nos altares e nos corações dos crentes.
Porém, pode-se andar por «Ceca e Meca» que
não se encontrará outra como a da nossa terra, nem mesmo no Monte Pombeiro em
Felgueiras, onde Santa Quitéria tem Santuário. Nem outra, nem igreja, nem
romaria, como aquela que se faz (ou fazia…) à nossa Santa Quitéria de Meca, a
«da terra da cereja // que está tão encarnadinha // lá dentro da sua igreja». E
já que aqui falámos de «Ceca e Meca», antigo aforismo, refira-se que “Ceca” era
a designação popular da mesquita de Córdova, capital muçulmana da Ibéria, pelo
que, segundo alguns, dizer «andar por Ceca e Meca», será o mesmo que aludir às
antigas peregrinações hispano-muçulmanas, entre os dois centros religiosos mais
importantes do Islão, o do ocidente e o do oriente. Contudo, há quem discorde,
dizendo que Ceca é o que já dissemos, mas Meca está lá só para rimar…
Todavia uma coisa é quase certa, quando
juntamos Ceca (Seca ou Asseca) a Meca, mais os «olivais de Santarém», será da
nossa Meca e das suas romarias que se trata, essas romarias tão prazenteiras e
concorridas que levavam à beira das estradas muitas famílias munidas dos seus
farnéis, para, simplesmente, ficarem todo o dia a «ver passar povo para Meca»,
outro dizer popular.
Segundo reza a lenda, foi no distante ano
de 1218 que na Quinta de S. Brás, vizinha de Meca, apareceu no oco de um
espinheiro uma pequenina imagem de Santa Quitéria. Rapidamente o povo afeiçoou-se
a ela, pelo que viu com tristeza o prior de Santa Maria da Várzea, paróquia a
que ao tempo pertencia Meca, levar essa santa para a sua igreja na vila de
Alenquer.
Então operou-se um novo prodígio, muito
mais significativo do que o do seu aparecimento, pois inexplicavelmente, no dia
seguinte, a imagem desapareceu da Várzea para voltar a aparecer em Meca, no
mesmo local onde fora encontrada.
Era vontade do céu, não havia, pois, que teimar. Fez-se capelinha para a receber, casa modesta que ao longo dos tempos foi crescendo na medida em que aumentava a devoção popular à Santa. Assim, de melhoramento em melhoramento, era já de pedra, bem ornamentada e muito acolhedora, a igreja que recebia os romeiros e que o terramoto de 1755 deitou por terra.
Na ocasião, por obra de 30.000 cruzados,
ergueu-se um barracão de madeira, no mesmo sítio onde hoje estão umas mesas de
pedra, casa precária na qual os devotos de Santa Quitéria pudessem dar
continuidade à sua fé, na presença da imagem. Disso mesmo nos deu conta Berardo
Silva, prior da Asseiceira, protonotário apostólico e visitador das igrejas do
termo de Lisboa: «Achei esta igreja paroquial de Santa Quitéria arruinada por
causa do terramoto, por cuja necessidade se fez uma barraca e levantou Altar,
aonde se colocou o sacrário com o Santíssimo Sacramento, que está com
suficiente decência».
Conta-nos ainda este prior que encontrou
«disposto o risco [projecto] para a nova igreja» recomendando que se lhe desse
início com brevidade pois que «é obra que necessita de anos para se completar»,
o que deixava desde logo antever que seria templo com certa magnificência.
Obtida pela Mesa da Confraria uma «provisão de autorização do Rei D. José I, as
obras tiveram o seu início em 1758, sob o encargo da citada Mesa da Confraria,
beneficiada e muito em esmolas» e já ao tempo «uma das mais ricas e poderosas
em Portugal».
Mas, fosse por má administração ou por má
gestão dos dinheiros que não rendiam nem faziam andar a obra, esta arrastou-se
por mais de duas décadas, quando, em 1778, o empreendimento sacro obteve o
patrocínio da rainha D. Maria I. Refere Mónica Queiroz, em tese de doutoramento
em Belas Artes (2013), obra que neste capítulo da nova igreja seguimos mais de
perto, que as mesmas prosseguiram, mas não pacificamente, já que houve
situações de desordem graves no seio da Mesa da Confraria, as quais conduziram,
inclusive, à expulsão do então juiz que presidia à dita Mesa.
Com mais ou menos demora a igreja fez-se.
E fez-se, conforme é notado, à semelhança da Basílica da Estrela, com as suas
duas torres com remate bolboso e fogaréus. Sobre quem teria sido o arquitecto,
certezas não se têm, porque não foi encontrado documento com o seu nome, mas os
especialistas apontam o dedo a Mateus Vicente de Oliveira, o «arquitecto da
Rainha», como pessoalmente o ouvimos de António José Pereira, grande estudioso
do barroco português, naquela que foi a sua primeira visita ao monumento.
Isto,
também, porque vêem em Meca o modelo que Mateus Vicente delineou para a
Estrela, salientando Mónica Queiroz que «o arco querenado e o óculo
quadrilobado projectados para a fachada da Basílica da Estrela acabaram por ser
realidade em Meca», fazendo ainda notar que «em Lisboa apenas se mantiveram as
quatro pilastras adossadas à parede» presentes em Meca.
É ainda a mesma estudiosa que faz luz
sobre uma «lenda» que todos já ouvimos contar porque as gentes de Meca a guardaram
na sua memória colectiva, a de que o mestre-de-obras teria caído de uma das
torres da igreja e não teria visto a obra concluída, porque morrera nesse
acidente. Refere ela que «por informação dos descendentes de Mateus Pereira, o
arquitecto terá de facto sofrido um acidente numa das suas visitas à igreja de
Meca e terá recuperado da queda em casa de sua filha Ana Joaquina Mónica, já
casada com o major Falcão Encerrabodes e a viver em Arruda dos Vinhos. (…) Da
queda nunca recuperaria totalmente, sendo esta uma das causas da sua morte,
ocorrida em Lisboa, em Março de 1785».
Já sem a presença de Mateus Vicente, em
1790 estavam concluídas «a frontaria e uma das torres da fachada, o tecto e a
respectiva pintura, e os dois painéis laterais da autoria de Pedro
Alexandrino», mas a igreja só ficaria concluída em 1799. Uns longos 41 anos
foi, assim, o tempo que demorou a construção deste notável templo, joia do
património concelhio, não só pela magnificência do edifício, mas também pelas
obras de arte que encerra.
São estes painéis os alusivos à «Pregação
de João Baptista» (do lado da Epístola, à direita) e «A Última Ceia» (do lado
do Evangelho), este último assinado pelo pintor. Por recibo passado por
Alexandrino, sabe-se que são suas esta tela e uma existente na sacristia que
representa «Nossa Senhora da Conceição», havendo no tecto do cruzeiro uma
representação dos «Quatro Evangelistas» que também lhe é atribuída. Todo ele ricamente
ornamentado, o tecto exibe na nave da igreja pinturas em tela alusivas a cenas
da vida da santa que saíram do pincel de José António Narciso (1731-1811), que
do seu trabalho também passou recibo.
Deste último pintor, que em vários locais
trabalhou ao lado de Pedro Alexandrino, será ainda o interessante tecto da
sacristia de Meca, em «tromp d’oeil», tendo Narciso deixado um outro tecto
análogo na sacristia da Igreja do Sacramento, em Lisboa, trabalho esse que, segundo
Victor Reis, terá antecipado o de Meca, provavelmente a sua última obra.
Chegados a Meca, parafraseando Francisco
Câncio, num primeiro golpe de vista a igreja prende-nos logo, «é bela em
demasia para uma solidão daquelas». Mas é ali que mora a Santa «advogada da
hidrofobia». Poucos saberão porque Santa Quitéria assim o é, terminemos então
com a lenda que o explica: Conta-se que ao tempo em que os romanos ainda por cá
andavam, Quitéria, jovem de 15 anos, foi dada em casamento por seu pai Lúcio
Severo ao jovem aristocrata Germano.
Já casada espiritualmente com Cristo, a
jovem recusou e fugiu para onde um anjo lhe havia indicado que seria o seu
lugar do seu martírio. Enfurecido e despeitado, seu pai ordenou a Germano que a
procurasse e lhe cortasse a cabeça. Germano só viria a encontrá-la porque um
pastor a denunciou, e, tendo sido esse pastor mordido por cães raivosos que lhe
fizeram muitas feridas, nesse miserável estado e antes da jovem sofrer o
martírio, implorou-lhe que o perdoasse. Ela não só lhe perdoou como o mandou
lavar as feridas numa fonte que ali perto miraculosamente brotara, fonte santa
porque logo o pastor ficou curado. Assim Quitéria se tornou a advogada contra a
raiva.
Bibliografia:
- BRANCO, Padre Carlos
Alberto da Silva F., Basílica de Santa Quitéria de Meca – Fé, Culto e
Património, Confraria da Santa Quitéria de Meca, 1993;
- CÂNCIO, Francisco, Notas
de um Ribatejano, Lisboa, 1956;
--- Ribatejo, Edição de Autor, Lisboa,
1935;
- CASIMIRO, Luís Alberto,
“Quitéria, uma santa da Lusitânia nas terras de Entre-Douro-e-Minho”, in Cultura
– Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 27, 2010;
- MARTINS, Padre José
Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais,
Alenquer, Arruda Editora, 2008;
- MELO, António de
Oliveira, GUAPO, António Rodrigues, MARTINS, José Eduardo, O Concelho de
Alenquer, 1, Alenquer, 1984;
- QUEIROZ, Mónica Ribas
Marques Ribeiro de, O Arquitecto Mateus Vicente de Oliveira (1706-1785) –
Uma práxís original na arquitectura portuguesa setecentista, Faculdade de
Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2013, Tese de Doutoramento em belas
Artes;
- REIS, Víctor, “A
Descoberta de um Tecto- Alegoria Celestial de José António Narciso(…)”, in
Revista de História da Arte, n.º 11, 2014.
(III) - SENHORA DA AMEIXOEIRA, METIDA NUMA CHARNECA…
Frei Agostinho de Santa Maria, no seu “Santuário
Mariano”, citando fontes ainda mais antigas, remete-nos para as brumas da
História dizendo-nos que nesse local afastado de tudo, já muito antes da
entrada dos mouros no território, estavam por lá orando nesse fim do mundo, uns
eremitas Agostinhos (seguidores da doutrina de Santo Agostinho de Hipona), e
por lá se teriam mantido, com ou sem a presença de Santo Ancirado, um monge
vindo da Alemanha que é tido como o fundador do Mosteiro de Penafirme, perto da
foz do Alcabrichel, entre Torres Vedras e a Lourinhã, até que incomodados pelos
infiéis daí teriam fugido para junto do mar, deixando enterrados num cofre
objectos de grande veneração, para que não caíssem nas mãos dos seguidores de
Maomé.
Aqui
chegados, a narrativa dá um salto de séculos, tantos quantos aqueles que nos
levam ao ano de 1217, em que reinando em Portugal D. Afonso II e sendo senhora
de Alenquer sua irmã a princesa D. Sancha, veio ao reino Frei Soeiro Gomes, um
discípulo de S. Domingos que em Outubro do ano anterior vira a sua Ordem de
padres pregadores aprovada pelo Papa Honório III.
Estava então o reino sob interdito pelas
desavenças entre o rei e o arcebispo de Braga, D. Estêvão Soares da Silva. No
dizer de Frei Luís de Sousa, autor da monumental “História da Ordem de S.
Domingos”, vivia Portugal num estado «semelhante ao dos mouros, seus vizinhos,
em não ter missa nem ofício divino, nem som de sinos ou outra solenidade».
Assim, enquanto se dirigia a Alenquer ao encontro de D. Sancha, «ia magoado de
tanta igreja fechada, e tanto silêncio, e tristeza».
Em Alenquer, na presença da piedosa
Princesa que haveria de ser santa, encontrou D. Soeiro Gomes refrigério para a
sua alma e apoio para a sua missão, pelo que em breve estava fundando no alto
da Serra de Montejunto, junto a uma venerável capelinha em honra de Nossa
Senhora das Neves, a primeira das casas da Ordem Dominicana em Portugal. Contam
os livros religiosos, ou a lenda, que em certas noites de luar, perscrutando o
escuro que lhe escondia o horizonte, via ao longe umas luzes movendo-se,
enquanto uma música celestial lhe chegava aos ouvidos.
As luzes apareciam na charneca, no local
onde se situava uma «quinta que se chamava Ameijoeira por haver nela o
ordinário pasto das bestas, que os Reis que [ou quando] moravam em Alenquer
davam às suas, e era de um Nuno Gonçalves, fidalgo da Casa d’El-Rei», assim se
escreve na “Santuário Mariano”.
Entre o intrigado e o maravilhado, Frei Soeiro Gomes fez chegar esta nova ao próprio Rei que estava em Alcácer do Sal, assistindo ao cerco que o Bispo de Lisboa, D. Soeiro Viegas, e cavaleiros por si liderados, auxiliados por cruzados, haviam imposto à forte praça que uma vez conquistada por D. Afonso Henriques em 1158, em 1191 havia caído novamente para o campo adversário, quando da segunda investida dos almóadas capitaneados por Almançor.
Alcançado o sucesso em Alcácer, veio o Rei
D. Afonso II com o seu séquito dar graças à Senhora das Neves de Montejunto,
aquela que morando no alto da serra assim era cantada pelo povo: «Nossa Senhora
das Neves // Tem o seu mantinho roto. // Foi S. João a brincar // Que o Santo é
muito maroto.», e, estando a régia comitiva na presença de Frei Soeiro, logo as
visões nocturnas do bom frade se impuseram pelo que daí partiram, na companhia
do Bispo, para o local onde apareciam as tais luzes.
Escavando
onde a intuição mandou procurar, logo encontraram um cofre e, retirado este,
operou-se o primeiro prodígio: no local onde ele estava rebentou uma copiosa
nascente de água. Aberto o cofre, maravilhados encontraram nele uma imagem da
Virgem e uma pedra onde Ela havia deixado impressos os seus pés, tudo
acompanhado de dois pergaminhos onde se explicava, em «latim bárbaro e
corrupto», que a imagem havia sido escondida para se a «guardar das mãos dos
bárbaros» e que «(…) esta pedra é a mesma que a Virgem santíssima se dignou
estampar as suas sagradas plantas, vindo em corpo e alma visitar esta última
parte do Mundo. A 10 das Kalendas de janeiro era de 755. Seja o senhor servido
defendê-la das mãos dos mouros».
Diz-se que, «tomado de amor divino» o Rei
Afonso II beijou as relíquias e mandou construir no local uma ermida onde,
atraídos pela fama milagrosa da imagem, acorriam numerosos fiéis em constantes
romagens, pois «eram muitos os prodígios e as maravilhas que ali se operavam
por intercessão da Mãe de Deus, assim como a água da sua fonte, como a terra do
lugar onde estivera enterrada» no cofre, como o refere Frei Agostinho de Santa
Maria.
Cresceu a devoção e expandiu-se o culto. Damião
de Góis também foi crente da Senhora da Ameixoeira, pois, como declarou ao
Tribunal da Inquisição quando do seu processo, a ela ofereceu «uma vestimenta
de seda e um cálice de prata». Mas a quem este culto terá despertado sincero
interesse, foi ao primeiro dos reis Filipes, o segundo de Espanha, com o cognome
de “O Prudente”, que, segundo a tradição, agradado da pedra que a Virgem pisara
e marcara deixando incisas as suas sagradas plantas, a mandou recolher ao
convento madrileno de S. Lourenço do Escorial, como «joia de grande preço».
Depois, entre a Ameixoeira e o Escorial,
perdeu-se o rumo a esta pedra objecto de tanta devoção, entrando ela,
forçosamente, no campo da lenda. Numa leitura actual, o arqueólogo Miguel
Costa, dessa lenda infere uma referência a «uma gravura rupestre», lembrando
que «este tipo de lendas surge normalmente associada a gravuras rupestres
decorrentes de cultos pré-cristãos» pelo que «este local de culto deveria ser
muito anterior à chegada do cristianismo».
Retomando o fio à História, a pequenina
ermida terá sobrevivido até cerca do séc. XVIII, quando então já existia uma
igreja nova e grande, de uma só nave, capela mor e três altares, onde no maior,
em tribuna de talha dourada, se podia ver na charola envidraçada a miraculosa
imagem da Senhora. Porém, não só, pois aí, em 1707, assinala o “Santuário
Mariano” uma “piscina de saúde”, certamente um tanque onde se banhavam os
peregrinos para beneficiarem das preciosas águas da nascente milagrosa, obtendo
curas documentadas em inúmeros ex-votos, «quadros que se vêem pendurados
nas suas paredes», assim como «casas de romagem» onde se acomodavam os romeiros.
Corria o ano de 1808 e estávamos no mês de
Julho, quando os franceses invasores foram desalojados de Pombal e Leiria por
estudantes de Coimbra que haviam pegado em armas. Junot logo despachou ao seu
encontro o General Margeron com dois batalhões de infantes, um esquadrão de
Cavalaria e seis peças de Artilharia. Chegados cerca de Alcoentre e não
encontrando o inimigo investiram sobre o Círio da Ameixoeira. O resultado foi
desastroso, «logo aos primeiros tiros caem por terra, banhados em sangue, o
pregador e o tocador de gaita, depois são assassinados indistintamente velhos,
mulheres e crianças». (Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno). Para
maior vergonha, os pendões do Círio foram levados como troféus para o Quartel
General de Junot, em Lisboa.
A igreja terá sobrevivido ao grande terramoto. Guilherme J. C. Henriques escreveu na sua obra maior que «haverá 40 anos, parece que ainda se festejava nela», o que nos remete para a primeira metade do século XIX. Talvez tenha sido em meados desse século que, estando o templo ao abandono num lugar tão ermo, logo sujeito a assaltos, o capelão tenha deixado o local e o povo da paróquia de Atouguia das Cabras levado a imagem para a igreja de N. Sr.ª da Graça, Abrigada, onde hoje se encontra. Mas, pertencendo ao tempo a Igreja da Senhora da Ameixoeira à colegiada de S. Pedro, Alenquer, essa acção não terá sido nada pacífica, pelo que mais de uma vez a imagem foi subtraída ora a uma ora a outra igreja pelo povo dessas freguesias, que dela se achava credor espiritual. Dos muitos Círios à Senhora da Ameixoeira, o de Curvel foi o mais persistente, chegando aos nossos tempos.
Bibliografia:
- CÂNCIO, Francisco, Notas de um Ribatejano, Lisboa, 1956;
--- Ribatejo, Edição de Autor, Lisboa,
1935;
- COSTA, Miguel Cipriano
Esteves, Redes Viárias de Alenquer e suas Dinâmicas, Coimbra, FLUC,
2010;
- CUNHA, D. Rodrigo da, História
Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;
- HENRIQUES, Guilherme
João Carlos, Alenquer e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal,
1873;
--- Inéditos
Goesianos, Vol. II, Fac-simile da Edição de 1898, Arruda Editora, 2002;
- MARTINS, Padre José
Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais,
Alenquer, Arruda Editora, 2008;
- MARIA, Frei Agostinho
de Santa, Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;
- MELO, António de
Oliveira, e outros, O Concelho de Alenquer, 3, Alenquer, 1986;
- SILVA, Inácio José
Alexandre da, Abrigada – Nossa Senhora da Ameixoeira, Abrigada, 2013;
- SOUSA, Frei Luís de, História
de S. Domingos, Vol. I. Lisboa, 1977.
(II) POR SANTIAGO, E COM SANTIAGO, ALENQUER FEZ-SE PORTUGUESA
Bibliografia:
- AMARAL, Diogo Freitas do, D. Afonso Henriques, Biografia, Braga, Círculo dos Leitores, 2000;
- BARBOSA, Pedro Gomes, Reconquista Cristã, Lisboa, Ésquilo, 2008;
- FERRO, João Pedro, Alenquer Medieval (Séculos XII-XV), Cascais, Patrimonia Historica, 1996;
- HENRIQUES, Guilherme João Carlos, Alenquer e seu Concelho, Lisboa, Typographia Universal, 1873;
- MARTINS, Padre José Eduardo Ferreira, Alenquer 1758 – O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, Alenquer, Arruda Editora, 2008;
- MATTOSO, José, D. Afonso Henriques, Rio de Mouro, Círculo dos Leitores, 2006;
- SOARES, Luso, A Vila de Alenquer, Lisboa, Tip. Couto Martins, 1941.
(I) HÁ 800 ANOS OS "SANTOS MÁRTIRES" PASSARAM POR ALENQUER A CAMINHO DE MARROCOS
Frei
Manoel da Esperança na sua icónica obra em cinco tomos, intitulada “Historia Seráfica
da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco” (Tomo I, 1656), descreve-nos o
prodígio dizendo que «(…) eles lhe apareceram mais resplandecentes que a mesma
luz do Sol, com as insígnias do martírio nas mãos, que não seriam espadas
banhadas em sangue fresco, como alguns os pintaram, pelo horror que poderiam
causar: senão cruzes cercadas de resplendores, em cuja virtude, comunicada da
morte do Redentor, alcançaram a vitória.».
Revela ainda o cronista: «Saudaram-na
cortesmente e disseram: Deus vos salve ilustríssima Princesa. Sabei,
senhora, que as vossas caridades têm chegado ao céu e que, com elas, fostes
parte para nós merecermos esta glória. Agora acabamos de vencer a mesma morte e
imos viver eternamente na companhia de Deus. E porque vós nos recebestes aqui,
nesta vossa casa, e dela nos iniciastes a esta batalha santa, o mesmo Senhor
nos manda que vos demos estas novas. Dadas elas, desapareceram logo,
deixando-a confortada de tal modo em o serviço de Deus, que se dantes tratava
da santidade, deste tempo em diante se exercitou mais nela».
- Fragmento do painel de azulejos que cobre a portaria do Convento de S. Francisco de Alenquer Os Santos Mártires aparecem a Santa Sancha na hora do seu suplício em Marrocos |
Adianta o texto que «por sua via se soube do mesmo tempo este caso no convento [então, ainda em Santa Catarina], o qual por ser mais interessado no bom sucesso dos Mártires, que dele tinham saído para a terra dos mouros, fez com alegria maiores demonstrações». Impressionada com o prodígio, em breve a santa Princesa fez oferta do seu paço aos franciscanos de Santa Catarina (1222) «ficando sempre em pé a dita câmara que conserva ainda a forma antiga. E é advertência de muitos, que recende maravilhosamente, e que sendo passados mais de quatrocentos anos, tem o forro tão novo, como se fora obrado hoje» (“Agiologio Lusitano”, Tomo III, do licenc. George Cardoso, 1666). Esta câmara onde se obrou o milagre, é hoje conhecida como capela de Santa Sancha. Passados outros quatro séculos, ainda lá está para acolher o visitante, e dela contaram ao longo dos anos outros autores e é voz popular que, por obra do divino, sempre se manteve prodigiosamente limpa, nela não entrando aranhas ou outros insectos, recendendo a um odor celestial.
Mas, deixemos o miraculoso e entremos na História. Corria o ano de 1219, de um tempo que era ainda de cruzadas à Terra Santa (1096-1270), quando entre Maio e Junho, após o capítulo geral da Ordem acontecido pelo Pentecostes, São Francisco decidiu enviar para o norte de África seis frades da sua Ordem, mais concretamente para Marrocos «cabeça do império africano, onde estava el-rei Miramolim, para trabalharem de o converter à fé de Cristo, porque convertido ele seria causa de todo o seu reino e vassalos se converterem a seu exemplo» (“Tratado da vida e martírio dos cinco Mártires de Marrocos”, Coimbra, 1568, de autor anónimo).
Foram eles, os eleitos, os italianos Frei
Vital, sacerdote, que liderou o grupo até Aragão onde adoeceu, Frei Berardo de
Carbio, presbítero e orador de grande mérito, que a partir de Aragão se tornou
o leader, Frei Otto, sacerdote, Frei Pedro de Santo Geminiano, diácono e os
irmãos professos Frei Adjuto e Frei Acúrsio. De todos, só os dois primeiros
conheciam a língua árabe. Vestidos de «grosso burel sobre as suas carnes,
cingidos com cordas, descalços e postos em tão áspero trajo, despojados de
alforge ou bordão, foram sempre pregando a fé cristã e evangélica por todas as
praças e lugares públicos e particulares onde viam gente junta» (Tratado
atrás citado).
Chegados a Coimbra foram recebidos pela rainha
D. Urraca, mulher de D. Afonso II, a quem revelaram a sua missão. É bem
possível que nessa cidade à beira do Mondego, onde pobremente se acolheram ao
hospício do Mosteiro de Santa Cruz (dos padres crúzios), tenham conhecido um
certo cónego regrante de Santo Agostinho, de nome Fernando de Bulhões (Santo
António de Pádua ou de Lisboa), mais tarde uma das glórias da sua ordem, a ela
atraído, quiçá, pelo seu exemplo. Mas o seu destino, para já, era Alenquer,
onde se apresentaram com carta da rainha D. Urraca a sua cunhada a princesa D.
Sancha.
Relata Frei Manoel Esperança que D. Urraca
«encomendava [a D. Sancha], que, pois que estava tão vizinha de Lisboa, lhes
mandasse aprestar embarcação». Todavia, «primeiro que subissem ao paço, vieram
ao convento [como já referimos, ainda em Santa Catarina] para dar obediência ao
santo guardião Frei Zacarias [um dos fundadores da Ordem em Portugal] e para se
consolarem com a vista de seus caríssimos irmãos, do trabalho e do caminho».
Quando a Infanta soube da sua chegada, chamou-os e «vendo tantos sinais
expressos de santidade, acompanhados do desejo de martírio, notavelmente lhes
ficou afeiçoada; e, enquanto os teve em Alenquer sempre se aproveitou da sua
conversação (…)».
Em Alenquer cresceram as barbas aos frades
e chegado o tempo, vestidos de roupas seculares (ou de romeiros), uma exigência
do mestre da embarcação para não desagradar aos mouros com quem comerciava,
«armados já cavaleiros para a sua vitoriosa batalha (…) despediram-se alegres,
assim dela [da Infanta], como também do convento»,
Depois
foi o martírio, primeiro em Sevilha, ainda sob o domínio do Islão e de seguida
em Marrocos, às mãos de Miramolim, já que para aí foram deportados pelo emir de
Sevilha. Chegaram a Marraquexe na companhia de D. Pedro Fernandez de Crasto, e
nessa cidade tiveram o apoio do infante D. Pedro, irmão do rei D. Afonso II e
de D. Sancha, presente na corte do sultão sarraceno como “nobre mercenário”,
situação curiosa para um infante e que, segundo alguns, fora ditada por razões
económicas e por desavenças com seu irmão e rei, afinal tão comuns aos filhos
segundos da nobreza, e, pelos vistos, mesmo aos da mais alta nobreza.
Painel do políptico do Convento de S. Francisco de Évora Suplício das cinco frades franciscanos em Marrocos |
Seria este Infante
quem, com imensas dificuldades e trabalhos, alcançaria recolher, tratar por
emundação as ossadas [fervendo os despojos para separar a carne dos ossos, um
processo comum à época], e acondicioná-las para uma longa viagem até Coimbra,
onde chegaram em finais de 1220, vindas de Leão e conduzidas por Afonso Pires
de Arganil.
Voltando à lenda, tinham os Santos Mártires
profetizado à rainha D. Urraca, quando da sua passagem por Coimbra, em resposta
a uma pergunta desta, que entre ela e o Rei seu marido o primeiro a morrer
seria o que primeiro vislumbrasse as suas relíquias. Por coincidência ou não, o
destino (ou o céu) jogou em desfavor da soberana, como se sabe. Ainda à chegada
das relíquias a Coimbra, o sobrenatural fez-se sentir naquele que viria a ficar
conhecido como o «milagre da burra». Vindo as relíquias em dois cofres sobre
uma burra, dirigiu-se esta e estancou defronte da Igreja de Santa Cruz, não
mais se movendo, até que lhe abriram as portas. Aí avançou igreja dentro para parar
junto do altar-mor, como quem faz a entrega das sagradas arcas.
Em Alenquer, para além da capela de Santa
Sancha, no Convento de S. Francisco, encontra-se ligada a este sucesso, a
Igreja do que foi o Oratório de Santa Catarina, (não o original onde esteve
Frei Zacarias, porque este é do séc. XVII), conventinho que, enquanto funcionou
como tal, acolhia cinco frades franciscanos, do convento maior, em homenagem
aos Cinco Mártires de Marrocos. Frei Fernando da Soledade, na sua “História
Seráfica”, de 1719, assinala a existência aí de uma «multidão de preciosas
relíquias (…) as quais para maior veneração se engastaram em meios corpos, e
braços, de Santos a quem pertencem». A partir de Coimbra, dispersas por muitos
locais religiosos, teria chegado a Alenquer uma dessas relíquias?
Bibliografia:
- CARDOSO, Lic. George, Agiologio
Lusitano, Tomo III, Lisboa 1666;
- CORNEJO, Damian, Chronica Serphica, Tomo
II, Madrid, 1727;
- CUNHA, D. Rodrigo da, História
Eclesiástica da Igreja de Lisboa, Parte II, Lisboa, 1642;
- ESPERANÇA, Frei Manoel da, História
Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, Livro I, Lisboa,1656;
- MARIA, Frei Agostinho de Santa,
Santuário Mariano, Tomo II, Lisboa, 1707;
- MELO, António de Oliveira, e outros, O
Concelho de Alenquer, 3, Alenquer, 1986;
- PACHECO, Milton Pedro Dias, “Os
Proto-Mártires de Marrocos da Ordem de São Francisco” in Revista Lusófona de
Ciência das Religiões, nº 15 de 2009, Coimbra, 2009;
- SOLEDADE, Fernando, Historia Seráfica
Chronologica da Ordem de S. Francisco da Província de Portugal, Tomo III,
Lisboa, 1705;
- Tratado da vida e martyrio dos Cinco
Martires de Marrocos enviados per são Francisco, Livro I, Coimbra, 1568.